O Testamento Que Me Despedaçou: Tudo Ficou Para Ela, E Eu Fiquei Sem Nada
— Não pode ser, doutor. O senhor está a ler mal. — A minha voz saiu-me rouca, quase um sussurro, enquanto as palavras do notário ecoavam pela sala fria do escritório. A minha filha, Inês, apertava-me a mão com força, mas eu sentia-me distante, como se estivesse a ver tudo de fora do meu próprio corpo.
O doutor Álvaro pousou os óculos na ponta do nariz e olhou-me com uma compaixão ensaiada. — Dona Teresa, lamento, mas é o que está escrito. O seu marido, António, deixou todos os bens, incluindo a casa e as contas bancárias, à senhora Sofia Cardoso.
Sofia Cardoso. O nome soava-me estranho, como uma pedra na boca. Olhei para Inês, que estava tão pálida quanto eu. — Quem é esta mulher? — perguntei, quase gritando, sentindo a raiva a ferver-me nas veias.
O silêncio caiu pesado. O notário desviou o olhar, e Inês começou a chorar baixinho. Eu não sabia se devia gritar, chorar ou simplesmente desaparecer. O António, o homem com quem partilhei trinta anos de vida, com quem criei uma filha, com quem enfrentei tempestades e verões, tinha-me deixado de mãos vazias. Tudo o que tínhamos construído juntos, cada tijolo, cada euro poupado, cada sacrifício, tinha ido parar às mãos de uma desconhecida.
Saí do escritório como um fantasma. As ruas de Lisboa pareciam-me irreais, as pessoas passavam por mim como sombras. Inês tentava consolar-me, mas eu não ouvia nada. Só conseguia pensar: Porquê? Porquê ela? Porquê não eu, a mulher que esteve ao lado dele em todos os momentos?
Quando cheguei a casa, sentei-me no sofá e olhei para as fotografias na estante. O António sorria em todas elas, ao meu lado, ao lado da Inês, nas festas de família, nos natais, nos verões em Sesimbra. Como é que alguém consegue fingir tanto tempo? Como é que se constrói uma vida inteira ao lado de alguém e, no fim, descobre-se que não se conhecia nada?
Naquela noite, não dormi. Revirei a casa à procura de pistas, cartas, qualquer coisa que me explicasse quem era Sofia Cardoso. No fundo de uma gaveta, encontrei um envelope com o nome dela escrito à mão. As mãos tremiam-me quando o abri.
“Querida Sofia,
Se estás a ler isto, é porque já não estou cá. Quero que saibas que foste o grande amor da minha vida. Peço-te desculpa por tudo o que não te pude dar em vida. Espero que este gesto te traga alguma paz.”
O papel caiu-me das mãos. O grande amor da vida dele? E eu? E a nossa filha? O que fomos nós, afinal?
No dia seguinte, fui falar com a minha irmã, Margarida. Ela ouviu-me em silêncio, os olhos cheios de lágrimas. — Teresa, eu não sabia de nada. Juro-te. Mas agora tens de ser forte. Tens de lutar pelo que é teu.
Mas como se luta contra um fantasma? Como se luta contra uma traição que já não pode ser explicada, nem perdoada?
Os dias seguintes foram um pesadelo. Os amigos evitavam-me, alguns por vergonha, outros por não saberem o que dizer. A família do António fechou-se em silêncio. Só a Inês ficou ao meu lado, mas até ela parecia perdida, sem saber como lidar com a dor da mãe e a memória do pai.
Decidi procurar Sofia Cardoso. Precisava de olhar nos olhos da mulher que me tinha roubado tudo, ou pelo menos, era assim que eu sentia. Descobri o endereço dela através de um velho amigo do António. Era uma casa modesta em Almada, nada do luxo que eu imaginava.
Toquei à campainha com o coração aos pulos. Uma mulher de cerca de cinquenta anos abriu a porta. Tinha o cabelo castanho preso num rabo-de-cavalo e olhos cansados. — Posso ajudar?
— Sou Teresa, a viúva do António. — As palavras saíram-me secas, cortantes.
Ela ficou pálida, mas não fugiu ao olhar. — Entre, por favor.
A casa era simples, cheia de livros e fotografias de família. Sentei-me na sala, as mãos a suar. Sofia serviu-me um chá, mas eu não toquei.
— Não vim aqui para chá. Vim para perceber quem é, e porque é que o meu marido lhe deixou tudo.
Ela suspirou, os olhos marejados de lágrimas. — Eu e o António conhecemo-nos há muitos anos, antes de ele casar consigo. Tivemos uma história, mas ele escolheu-a a si. Depois, reencontrámo-nos por acaso, há uns anos. Nunca quis destruir a sua família, Teresa. Ele vinha cá de vez em quando, conversávamos, só isso. Eu nunca pedi nada.
— Mas ele deixou-lhe tudo! — gritei, incapaz de controlar a dor.
— Eu não sabia. Juro-lhe. — Sofia chorava agora, as mãos a tremer. — Eu amava-o, mas sabia que ele era seu marido. Nunca quis isto.
Saí dali ainda mais confusa. O António tinha vivido uma vida dupla, mas não era a traição física que me doía mais. Era o facto de nunca me ter contado, de me ter deixado viver uma mentira.
Os meses passaram. Lutei nos tribunais, mas o testamento era claro. Fiquei sem casa, sem poupanças, sem nada. Tive de ir viver com a minha irmã. A Inês tentou ajudar, mas ela própria estava a começar a vida, sem meios para me sustentar.
A vergonha era insuportável. As pessoas cochichavam quando eu passava. “Coitada da Teresa, foi trocada por outra.” Senti-me velha, inútil, descartável.
Uma noite, sentei-me à janela e olhei para Lisboa iluminada. Pensei em tudo o que tinha perdido, mas também no que ainda tinha: a minha filha, a minha dignidade, a capacidade de recomeçar. Não foi fácil. Arranjei um trabalho numa pastelaria, a servir cafés e bolos a estranhos. No início, custava-me ver antigos conhecidos entrarem e fingirem que não me viam. Mas com o tempo, fui ganhando força.
A Inês foi o meu maior apoio. — Mãe, tu és mais forte do que pensas. O pai fez uma escolha errada, mas tu não és menos por isso.
Comecei a escrever um diário, a pôr no papel toda a raiva, tristeza e desilusão. Aos poucos, fui percebendo que o António não era o homem perfeito que eu idealizara. Era humano, cheio de falhas, e eu também.
Um dia, recebi uma carta da Sofia. Dizia que queria dividir a herança comigo e com a Inês. Fui ter com ela, desta vez sem raiva, apenas com uma tristeza resignada.
— Não quero nada de si — disse-lhe. — Só quero paz.
Ela sorriu, compreensiva. — Eu também.
Hoje, olho para trás e vejo uma mulher diferente. Mais dura, talvez, mas também mais livre. Aprendi que o amor não garante nada, que a vida pode mudar num segundo, e que só podemos contar connosco.
Às vezes pergunto-me: valeu a pena amar tanto alguém que me traiu assim? O que é que realmente nos pertence nesta vida? E vocês, o que fariam no meu lugar?