O Testamento: Quando a Família se Desfaz
— Não me venhas agora com moralismos, Ana! O pai sabia perfeitamente o que fazia! — gritou o Rui, com os olhos vermelhos de raiva e talvez de lágrimas que ele nunca deixava cair.
Eu estava sentada à mesa da sala, a mesma onde tantas vezes almoçámos em família, onde o pai contava histórias da infância dele em Trás-os-Montes e a mãe ria das piadas secas do Rui. Agora, só restava silêncio e uma pilha de papéis: o testamento, as certidões, as contas por pagar. E entre nós, um abismo que nunca pensei existir.
O pai morreu há três semanas. Um enfarte fulminante, disseram os médicos. Não houve tempo para despedidas, nem para resolver assuntos pendentes. No funeral, o Rui chorou baixinho ao meu lado, apertou-me a mão com força. Eu pensei: “Agora somos só nós dois. Vamos cuidar um do outro.”
Mas a leitura do testamento mudou tudo. O pai deixou a casa de família ao Rui e a mim apenas uma pequena quantia em dinheiro. “Para a Ana, que sempre foi independente”, escreveu ele. O Rui ficou com o carro, as terras em Vila Real e até com o relógio antigo do avô. Eu fiquei com as palavras: “A tua liberdade é o teu maior bem”.
— Achas isto justo? — perguntei-lhe, tentando não chorar.
— O pai sabia que eu precisava mais. Tu tens o teu emprego em Lisboa, a tua vida feita. Eu fiquei aqui para cuidar deles! — respondeu ele, quase cuspindo as palavras.
— Ficaste porque quiseste! Eu também teria ficado se me tivessem pedido…
— Pois, mas não ficaste! — cortou ele.
A mãe tentou intervir, mas estava tão perdida quanto nós. Desde que o pai morreu, ela parecia uma sombra de si mesma. Passava os dias sentada no sofá, olhando para a janela como se esperasse vê-lo voltar da mercearia.
Naquela noite, não consegui dormir. Ouvia os passos do Rui no corredor, as portas a bater. Lembrei-me de quando éramos crianças e fazíamos guerras de almofadas até a mãe nos mandar calar. Agora, mal conseguíamos falar sem gritar.
No dia seguinte, fui trabalhar com os olhos inchados. Os colegas perguntaram se estava tudo bem e eu menti: “Sim, só estou cansada”. Mas por dentro sentia-me vazia, traída não só pelo meu irmão, mas também pelo meu próprio pai.
Começaram as discussões sobre tudo: quem pagava as contas da casa antiga, quem ficava com os móveis, quem ia visitar a mãe aos fins-de-semana. O Rui acusou-me de ser egoísta, de só aparecer quando convinha. Eu atirei-lhe à cara que ele sempre foi o filho preferido.
Uma noite, depois de mais uma discussão acesa ao telefone, sentei-me no chão da cozinha e chorei como não chorava desde criança. Senti raiva do meu pai por nos ter deixado assim, sem explicações. Senti raiva do Rui por não perceber a minha dor. Senti raiva de mim própria por não conseguir perdoar.
Os dias passaram e as feridas só aumentavam. A mãe adoeceu — uma pneumonia que a deixou internada durante semanas. O Rui ligou-me finalmente:
— Ana… podes vir ao hospital? A mãe está pior.
Fui sem pensar duas vezes. No hospital, vi o Rui sentado ao lado da cama dela, com um ar cansado e envelhecido. Pela primeira vez em meses, não discutimos. Ficámos ali em silêncio, a olhar para a mãe a dormir.
— Achas que algum dia vamos voltar a ser como antes? — perguntei baixinho.
O Rui encolheu os ombros.
— Não sei… Talvez nunca tenhamos sido tão unidos como pensávamos.
A mãe recuperou devagarinho e voltou para casa. Eu fiquei mais uns dias em Vila Real para ajudar. O ambiente era estranho — uma mistura de saudade e ressentimento pairava no ar. Uma noite, sentei-me com o Rui na varanda:
— Lembras-te quando fugimos de casa para ir ver o rio ao pôr-do-sol? — perguntei-lhe.
Ele sorriu pela primeira vez em muito tempo.
— E apanhámos um raspanete dos grandes…
Rimos juntos, mas logo o silêncio voltou. Sabíamos que nada voltaria a ser igual.
Quando regressei a Lisboa, senti-me ainda mais sozinha. Os amigos tentavam animar-me:
— Isso passa… Família é sempre família.
Mas eu já não tinha tanta certeza disso. Comecei a evitar telefonar à mãe para não ter de falar com o Rui. No Natal seguinte, cada um ficou na sua casa.
Os anos passaram assim: encontros breves e frios nos aniversários da mãe ou nos funerais dos tios velhos. O Rui casou-se e teve dois filhos; eu continuei sozinha, dedicada ao trabalho e às viagens que sempre sonhei fazer.
Às vezes perguntava-me se devia ter lutado mais pelo que achava justo ou se devia simplesmente ter aceitado as escolhas do meu pai. Talvez nunca saiba a resposta.
Agora, sentada nesta mesma mesa onde tudo começou, olho para as fotografias antigas: eu e o Rui de mãos dadas no jardim; o pai a sorrir com orgulho; a mãe com aquele olhar terno que já quase não me lembro de ver.
Será que família é mesmo só sangue? Ou somos apenas estranhos ligados por memórias antigas e um apelido comum?
E vocês? Já sentiram que perderam alguém sem nunca terem tido oportunidade de se despedir verdadeiramente?