O Silêncio Quebrado à Mesa de Domingo: Quando a Tradição Dói

— Maria, podes passar-me o arroz? — pediu a minha sogra, sem sequer olhar para a minha filha, que estava sentada ao seu lado, os olhos grandes e expectantes, esperando talvez um sorriso, uma palavra, qualquer coisa. O arroz estava mesmo à frente da Leonor, mas a minha sogra estendeu a mão por cima dela, quase como se ela não existisse.

Senti o sangue ferver-me nas veias. O meu marido, Rui, fingia não ver. O meu filho, Tiago, ria-se alto das piadas da avó, que lhe enchia o prato de batatas assadas e lhe acariciava o cabelo. A Leonor, com apenas oito anos, baixou os olhos para o prato e ficou a mexer no feijão verde com o garfo. O silêncio dela era ensurdecedor para mim.

Desde que me casei com o Rui e entrei para esta família de raízes profundas em Trás-os-Montes, percebi que havia coisas que não se diziam em voz alta. A tradição era lei. E uma dessas tradições era tratar os rapazes como príncipes e as raparigas como figurantes. No início pensei que era exagero meu, mas com o tempo fui vendo os pequenos gestos: prendas melhores para o Tiago no Natal, beijos mais demorados, perguntas sobre a escola só para ele. A Leonor era sempre “a menina bonita”, mas nunca a menina importante.

— Mãe, posso ir brincar lá fora? — perguntou o Tiago.
— Claro que sim, meu querido! Mas leva o casaco, está frio — respondeu a minha sogra com ternura.

A Leonor olhou para mim. Eu sabia o que ela queria perguntar: “E eu?”. Mas não disse nada. Nunca diz. Aprendeu cedo que não vale a pena.

O almoço continuou entre conversas sobre futebol e política local. O Rui falava do novo projeto na Câmara Municipal, orgulhoso. A minha sogra interrompia-o só para perguntar ao Tiago se queria mais sumo. Eu sentia-me invisível, cúmplice por omissão.

Depois do almoço, enquanto arrumava a loiça na cozinha, ouvi a minha sogra dizer ao Rui:
— O Tiago vai longe. Nota-se logo nos rapazes quando têm cabeça para os negócios. Já a Leonor… é tão distraída! Sempre no mundo dela.

Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. Lavei um prato com tanta força que quase o parti.

À noite, depois de deitar as crianças, sentei-me ao lado do Rui na sala.
— Não viste o que aconteceu hoje? — perguntei-lhe em voz baixa.
Ele suspirou.
— Outra vez isso? A minha mãe é assim, sempre foi. Não vale a pena stressares.
— Não vale a pena? A Leonor sente-se menosprezada todos os domingos! Achas justo?
Ele encolheu os ombros.
— Ela é miúda, nem repara.

Senti-me sozinha. O Rui nunca quis enfrentar a mãe dele. Para ele, tradição era conforto. Para mim, era dor.

Na semana seguinte, tentei compensar a Leonor. Fomos só as duas ao parque, fiz-lhe panquecas ao pequeno-almoço, ajudei-a com um trabalho de ciências. Mas nada apagava aquele olhar triste ao domingo à tarde.

No domingo seguinte, decidi observar tudo com atenção redobrada. A minha sogra trouxe um presente para o Tiago: uma camisola do Benfica. Para a Leonor? Um pacote de gomas barato.

— Obrigada, avó — disse ela baixinho.
A minha sogra sorriu-lhe de forma apressada e voltou-se logo para o neto:
— Então, Tiago, já marcaste algum golo esta semana?

A Leonor olhou para mim e eu vi nos olhos dela uma pergunta muda: “Porquê?”.

Na cozinha, tentei falar com a minha sogra:
— Sabe, mãe Lurdes… A Leonor também gosta muito de futebol.
Ela riu-se.
— Ai filha, as meninas são diferentes! Não ligam a essas coisas como os rapazes.
— Mas ela gosta mesmo — insisti.
Ela abanou a cabeça.
— Isso passa-lhe. As meninas são mais sensíveis, gostam é de bonecas e dessas coisas.

Senti-me esmagada por aquela parede de certezas antigas. Como lutar contra algo tão entranhado?

Naquela noite não consegui dormir. O Rui ressonava ao meu lado e eu olhava para o teto escuro do quarto. Lembrei-me da minha própria infância em Viseu. Também eu fui “a menina sensível”, sempre à sombra do meu irmão mais velho. Jurei que nunca deixaria isso acontecer aos meus filhos. Mas estava a falhar.

Na segunda-feira fui buscar a Leonor à escola mais cedo e levei-a ao café da vila para um gelado.
— Estás triste por causa da avó? — perguntei-lhe com cuidado.
Ela encolheu os ombros.
— Ela gosta mais do Tiago.
O meu coração partiu-se ali mesmo.
— Não é verdade — menti — Ela gosta dos dois…
A Leonor olhou-me nos olhos:
— Então porque é que nunca me faz perguntas? Porque é que só traz presentes bons para o Tiago?
Não soube responder-lhe.

Durante dias andei perdida nos meus pensamentos. No trabalho distraía-me facilmente; os colegas perguntavam se estava tudo bem e eu sorria sem convicção. Em casa tentava manter tudo em ordem: refeições feitas, roupas lavadas, trabalhos de casa supervisionados. Mas sentia-me cada vez mais sufocada pela injustiça e pela impotência.

Na sexta-feira à noite decidi falar com o Rui outra vez.
— Isto não pode continuar assim — disse-lhe — A Leonor está mesmo magoada.
Ele olhou-me cansado:
— Queres que eu diga alguma coisa à minha mãe?
— Quero que estejas do nosso lado! Quero que percebas que isto não é normal!
Ele ficou calado durante muito tempo.
— Sabes como ela é… Se lhe dissermos alguma coisa vai ficar ofendida. Vai dizer que estamos contra ela…
— E então? Vamos continuar a deixar que ela magoe a nossa filha só porque temos medo de conflitos?
Ele abanou a cabeça e saiu da sala sem dizer mais nada.

No sábado acordei decidida: não íamos ao almoço de domingo. Liguei à minha sogra e inventei uma desculpa qualquer sobre uma constipação da Leonor. Ela pareceu pouco preocupada:
— Então venham só tu e o Tiago!
Senti vontade de gritar.
— Não, mãe Lurdes. Ou vamos todos ou não vai ninguém.
Ela ficou em silêncio do outro lado da linha.

Passei o domingo em casa com as crianças. Fizemos um bolo de chocolate juntos e vimos um filme no sofá. Pela primeira vez em muito tempo vi a Leonor sorrir sem reservas.

Mas sabia que não podia fugir para sempre. Na segunda-feira recebi uma mensagem da minha sogra: “Quando é que voltam? O Tiago faz-me falta.” Nem uma palavra sobre a Leonor.

Falei com uma amiga do trabalho sobre tudo isto. Ela contou-me histórias parecidas da própria família: irmãos preferidos, filhas ignoradas em favor dos rapazes. Percebi que não era só comigo; era um problema maior, enraizado na nossa cultura há gerações.

Na terça-feira à noite sentei-me com o Rui e disse-lhe:
— Ou enfrentamos isto juntos ou vou ter de proteger a nossa filha sozinha.
Ele olhou-me nos olhos pela primeira vez em semanas:
— Tens razão. Não quero que a Leonor cresça a sentir-se menos amada só porque nasceu rapariga.
Senti um alívio imenso misturado com medo do confronto inevitável.

No domingo seguinte fomos ao almoço como sempre. Antes de nos sentarmos à mesa pedi licença e falei diretamente com a minha sogra:
— Mãe Lurdes, preciso de lhe pedir um favor: trate os meus filhos por igual. A Leonor sente-se triste quando vê que só dá atenção ao Tiago.
Ela ficou vermelha de indignação:
— Estás a chamar-me injusta?
Respirei fundo:
— Não estou a acusá-la de nada… Só peço que repare na Leonor também. Ela precisa da avó tanto quanto o irmão.
O Rui ficou ao meu lado e disse:
— Mãe… É importante para nós os dois.
A minha sogra murmurou qualquer coisa sobre “as modernices” e foi buscar mais vinho à cozinha.

O resto do almoço foi tenso mas diferente: pela primeira vez vi-a perguntar à Leonor sobre a escola — ainda que de forma forçada — e oferecer-lhe mais batatas assadas sem passar por cima dela como se fosse invisível.

Sei que não mudei tudo num dia só. Mas dei um passo enorme naquele domingo: escolhi não calar mais aquilo que dói em silêncio há gerações na nossa família — e talvez em tantas outras famílias portuguesas também.

Agora pergunto-me: quantas vezes deixamos passar pequenas injustiças por medo do confronto? E quantas Leonores crescem achando que valem menos só porque ninguém teve coragem de quebrar o silêncio?