O Silêncio Entre Nós: Quando Ele Não Quer Ter Filhos
— Inês, já falámos disto. Eu não quero ter filhos. — A voz do Miguel ecoou pela cozinha, cortando o silêncio da noite como uma lâmina. Eu estava de costas para ele, as mãos tremendo enquanto lavava a loiça do jantar. O cheiro a detergente misturava-se com o nó na minha garganta.
— Mas e se eu não conseguir viver sem isso? — perguntei, quase num sussurro, sem coragem de o encarar. O som da água a correr era a única coisa que preenchia o vazio entre nós.
Miguel suspirou, pesado. — Não é uma questão de não gostar de crianças, Inês. Eu só… Não me vejo a abdicar da nossa vida, das viagens, da liberdade. Não quero perder quem somos.
Aquelas palavras doíam mais do que qualquer discussão anterior. Seis anos de casamento, três de namoro antes disso, e nunca imaginei que chegaríamos aqui: cada um numa ponta da ponte, sem saber se dava para atravessar.
Lembro-me do início, quando tudo era fácil. Conhecemo-nos numa festa da faculdade em Coimbra. Ele estudava Engenharia Informática, eu Psicologia. Ríamos das mesmas piadas, partilhávamos sonhos de viagens pela Europa, tardes no Douro, noites a ver filmes antigos. O futuro parecia uma folha em branco onde podíamos desenhar juntos.
Mas os anos passaram e, aos poucos, comecei a sentir um vazio. As amigas engravidavam, as conversas mudavam. No Natal, a minha mãe perguntava sempre: — Então, quando é que me dás um neto?
Eu sorria, desconversava. Mas por dentro, o desejo crescia como uma raiz teimosa.
— Miguel, não achas que estamos a perder tempo? — perguntei numa noite fria de janeiro, enrolada no sofá com ele.
Ele olhou-me com ternura e tristeza ao mesmo tempo. — Não quero magoar-te, Inês. Mas não consigo imaginar-me pai. Não agora. Talvez nunca.
As semanas seguintes foram um arrastar de silêncios e pequenas discussões. Eu tentava não pressionar, mas cada vez que via uma criança na rua sentia o peito apertar. Comecei a evitar as amigas grávidas. Sentia inveja e culpa ao mesmo tempo.
A minha irmã, Filipa, foi das poucas pessoas a quem contei tudo.
— E se nunca muda de ideias? — perguntou ela numa tarde em que fomos passear junto ao Tejo.
— Não sei… — respondi, com lágrimas nos olhos. — Sinto-me egoísta por querer tanto isto. Mas também me sinto injustiçada por ele não querer sequer tentar.
Filipa abraçou-me. — O amor não devia ser uma prisão, mana.
O pior foi quando os meus pais começaram a notar o afastamento entre mim e o Miguel. No aniversário do meu pai, ele perguntou:
— Está tudo bem entre vocês? Pareces distante.
Sorri, mas a verdade é que já mal dormia à noite. Passava horas a pensar: será que devo abdicar do meu sonho por amor? Ou será que o amor verdadeiro implica ceder?
Uma noite, depois de mais uma discussão, Miguel saiu para dar uma volta. Fiquei sozinha na sala, rodeada pelas fotografias das nossas viagens: Paris, Veneza, os Açores. Tudo parecia tão distante agora.
Peguei no telemóvel e escrevi uma mensagem à minha mãe: “Preciso falar contigo”.
No dia seguinte fui até casa dela em Sintra. Sentei-me à mesa da cozinha onde tantas vezes tinha feito trabalhos de casa em miúda.
— Mãe… E se eu nunca for mãe? — perguntei-lhe, com a voz embargada.
Ela pousou a mão sobre a minha. — Filha, só tu podes saber o que te faz feliz. Mas não te percas para agradar ninguém.
Voltei para casa com o coração pesado. Miguel estava sentado no sofá à minha espera.
— Temos de decidir o que fazer — disse ele antes que eu dissesse qualquer coisa.
Sentei-me ao lado dele. — Eu amo-te, Miguel. Mas não consigo desistir deste sonho. Não consigo imaginar-me daqui a dez anos sem filhos… Sinto que vou arrepender-me para sempre.
Ele olhou para mim com lágrimas nos olhos — raramente o via chorar.
— E eu amo-te tanto que não quero prender-te aqui comigo se isso te vai destruir por dentro.
Naquela noite dormimos abraçados como se fosse a última vez. E talvez tenha sido mesmo.
Os dias seguintes foram um turbilhão: dividir contas, explicar aos amigos e à família que íamos separar-nos sem grandes dramas nem traições. Só um sonho impossível de partilhar.
A casa ficou vazia quando ele saiu com as últimas caixas. Fiquei sentada no chão da sala, rodeada pelo eco das nossas risadas antigas e dos planos desfeitos.
Voltei a viver sozinha depois de quase dez anos a partilhar tudo com alguém. Os primeiros meses foram difíceis: chorava ao ver anúncios de fraldas na televisão; sentia raiva dele por não ter mudado de ideias; sentia raiva de mim por não conseguir aceitar.
Mas aos poucos fui reaprendendo a estar comigo mesma. Voltei a sair com amigas, inscrevi-me num curso de cerâmica, comecei terapia. A dor foi dando lugar à esperança.
Um ano depois conheci o Pedro numa caminhada organizada por um grupo local em Cascais. Ele tinha uma filha pequena de outro casamento e falava dela com tanto amor que senti o coração aquecer pela primeira vez em muito tempo.
Hoje olho para trás e percebo que amar alguém nem sempre é suficiente para construir uma vida juntos. Às vezes é preciso coragem para escolhermos aquilo que realmente queremos — mesmo que isso signifique perder quem mais amamos.
Pergunto-me muitas vezes: quantas pessoas vivem presas ao medo de magoar o outro e acabam por se magoar ainda mais? Será que vale sempre a pena sacrificar os nossos sonhos pelo amor? Gostava de saber o que vocês fariam no meu lugar.