O Silêncio Entre Nós: O Distanciamento do Meu Marido e o Nosso Filho
— Não me venhas outra vez com isso, Sofia! — gritou Miguel, batendo com a mão na mesa da cozinha. O som ecoou pela casa, assustando até o Tiago, que estava na sala a fingir que brincava com os Legos. Eu senti o estômago apertar-se, como se cada palavra fosse uma pedra a cair dentro de mim.
— Não estou a vir com nada, Miguel. Só queria saber se vais buscar o Tiago à escola amanhã — respondi, tentando manter a voz calma, mas já sem forças para esconder o cansaço.
Ele levantou-se abruptamente, pegou nas chaves do carro e saiu sem olhar para trás. Fiquei ali parada, a olhar para a porta fechada, sentindo-me tão sozinha como nunca antes. O Tiago apareceu à porta da cozinha, olhos grandes e assustados.
— A mãe está triste? — perguntou ele baixinho.
Ajoelhei-me ao lado dele e abracei-o com força. — Não, meu amor. Só estou cansada. Vai brincar, está bem?
Mas ele não foi. Ficou ali, colado a mim, como se sentisse que algo estava errado. E estava mesmo. O Miguel já não era o homem por quem me apaixonei aos vinte anos. O sorriso fácil tinha desaparecido, as conversas longas à noite tinham sido substituídas por silêncios pesados e olhares vazios. E o pior era ver como ele se afastava do Tiago.
Lembro-me de quando o Tiago nasceu. O Miguel chorou mais do que eu. Passava horas a embalar o bebé, cantava-lhe canções de embalar que inventava na hora. Mas agora… agora parecia que cada vez que olhava para o filho via um estranho.
Comecei a reparar nos pequenos detalhes: Miguel chegava mais tarde do trabalho, evitava os fins de semana em família, respondia com monossílabos às perguntas do Tiago. E quando o menino tentava mostrar-lhe um desenho ou contar-lhe algo da escola, ele limitava-se a um “hum” distraído.
Uma noite, depois de deitar o Tiago, sentei-me no sofá ao lado do Miguel. Ele estava a ver televisão, mas percebi que não estava realmente a ver nada.
— Miguel… — comecei, hesitante — O que se passa contigo? Não és o mesmo… nem comigo, nem com o Tiago.
Ele suspirou fundo, passou as mãos pelo rosto e ficou em silêncio durante tanto tempo que pensei que não ia responder.
— Não sei… sinto-me preso — disse finalmente. — Sinto que perdi quem eu era antes de tudo isto. Antes de ser pai… antes de ser marido.
As palavras dele magoaram-me mais do que qualquer discussão. Eu também sentia falta de quem éramos antes, mas nunca pensei que ele visse o nosso filho como uma prisão.
— O Tiago sente a tua falta — disse eu suavemente. — Ele só quer um bocadinho do teu tempo.
Miguel levantou-se abruptamente outra vez e foi para o quarto. Fiquei ali sentada, sozinha com as minhas lágrimas e as perguntas sem resposta.
Os dias seguintes foram um arrastar de rotinas: acordar cedo, preparar o pequeno-almoço para o Tiago, levá-lo à escola, ir trabalhar no escritório de advogados onde era assistente jurídica. No trabalho fingia normalidade, mas bastava um telefonema da escola ou uma mensagem do Miguel para sentir o coração apertado.
A minha mãe começou a notar que algo não estava bem. Um domingo à tarde, enquanto tomávamos café na varanda dela em Almada, ela olhou-me nos olhos e perguntou:
— Sofia, tu e o Miguel estão bem?
Baixei os olhos para a chávena e tentei sorrir.
— Estamos só cansados…
Ela pousou a mão sobre a minha.
— Eu conheço-te melhor do que ninguém. Se precisares de falar…
Queria desabar ali mesmo, contar-lhe tudo: os silêncios, as discussões abafadas para não acordar o Tiago, as noites em que chorava baixinho na casa de banho para ninguém ouvir. Mas calei-me. Sempre fui ensinada a resolver os problemas dentro de casa.
O tempo foi passando e o Miguel tornou-se quase um hóspede na nossa vida. Chegava tarde, jantava sozinho e ia dormir sem sequer dar um beijo ao filho. O Tiago começou a perguntar por ele cada vez menos. Um dia ouvi-o dizer à avó:
— O pai não gosta de mim.
Senti uma dor tão grande no peito que quase não consegui respirar. Como é que chegámos aqui? Onde é que falhámos?
Tentei falar com o Miguel mais uma vez naquela noite.
— O nosso filho acha que tu não gostas dele — disse-lhe assim que entrou em casa.
Ele ficou parado à porta da sala, com os olhos vermelhos e cansados.
— Eu amo o Tiago… só não sei como ser pai dele agora — murmurou.
— Ele só precisa de ti! Não precisa de um herói ou de um super-homem… só precisa do pai dele!
Miguel abanou a cabeça e saiu outra vez. Desta vez não voltou nessa noite.
No dia seguinte recebi uma mensagem dele: “Preciso de tempo. Fico uns dias em casa do Rui.” Rui era o melhor amigo dele desde os tempos da faculdade. Senti-me traída e aliviada ao mesmo tempo: pelo menos agora sabia onde ele estava.
Os dias seguintes foram um caos silencioso. Tentei manter as rotinas para o Tiago não sentir tanto a ausência do pai. Mas ele sentia. Começou a fazer birras na escola, chorava sem razão aparente e recusava-se a comer ao jantar.
Uma noite sentei-me ao lado dele na cama e perguntei:
— O que se passa contigo, meu amor?
Ele olhou para mim com aqueles olhos enormes cheios de lágrimas.
— O pai foi embora por minha causa?
O meu coração partiu-se em mil pedaços. Abracei-o com toda a força que tinha e prometi-lhe que nada era culpa dele. Mas sabia que aquela ferida ia demorar muito tempo a sarar.
Comecei a ir à psicóloga. Precisava de ajuda para lidar com tudo aquilo. Falei-lhe dos meus medos: medo de perder o Miguel para sempre; medo de não conseguir proteger o Tiago; medo de ficar sozinha.
Ela disse-me algo que nunca vou esquecer:
— Às vezes amar alguém não chega para salvar uma família. É preciso coragem para pedir ajuda e humildade para aceitar que não controlamos tudo.
O Miguel voltou duas semanas depois. Parecia mais magro e envelhecido. Sentámo-nos à mesa da cozinha como dois estranhos.
— Preciso de ser honesto contigo — começou ele. — Estou perdido há muito tempo. Achei que ser pai ia ser fácil… mas sinto-me sempre a falhar convosco os dois.
Eu chorei baixinho enquanto ele falava. Ele também chorou. Pela primeira vez em meses falámos sem gritar nem fugir das dores.
Decidimos procurar ajuda juntos: terapia de casal e terapia familiar para tentar reconstruir alguma coisa dos cacos em que nos tínhamos tornado.
Não foi fácil nem rápido. Houve dias em que quis desistir; noites em que dormimos em quartos separados; momentos em que pensei que seria melhor cada um seguir o seu caminho.
Mas aos poucos fomos reaprendendo a falar um com o outro e com o Tiago. Aprendemos a pedir desculpa ao nosso filho pelas ausências e pelos silêncios; aprendemos a pedir desculpa um ao outro pelas palavras duras e pelos gestos frios.
Hoje ainda estamos longe da perfeição — se é que isso existe numa família real como a nossa — mas estamos juntos a tentar todos os dias ser melhores uns para os outros.
Às vezes pergunto-me: quantas famílias vivem presas neste silêncio? Quantos pais têm medo de admitir as suas fragilidades? Será que algum dia aprendemos mesmo a amar sem medo de falhar?