O Silêncio Entre as Chamadas: O Preço do Amor de uma Mãe
— Mãe, podes transferir-me 200 euros até ao fim do dia? — A voz da Sofia soa apressada, quase impaciente, do outro lado da linha. O meu coração aperta-se, como se cada palavra dela fosse uma pedra a cair num poço sem fundo dentro de mim.
Respiro fundo antes de responder. Tento não deixar transparecer a mágoa, mas a minha voz treme:
— Sofia, está tudo bem contigo? Precisas de alguma coisa além do dinheiro?
Silêncio. Ouço apenas o som abafado de trânsito, talvez ela esteja na rua, talvez nem queira realmente falar comigo. Finalmente, ela responde:
— Mãe, agora não posso falar. Depois ligo-te, está bem?
Desliga antes que eu possa dizer mais alguma coisa. Fico a olhar para o telefone na minha mão, como se esperasse que ele me devolvesse a filha que perdi para um mundo que não compreendo.
O António, meu marido, entra na sala e vê-me assim, parada, com os olhos marejados.
— Foi a Sofia outra vez? — pergunta ele, já sabendo a resposta.
Assinto com a cabeça. Ele suspira e senta-se ao meu lado no sofá. Há meses que vivemos nesta rotina: ela liga, pede dinheiro, promete ligar depois e desaparece até à próxima necessidade. Já nem sei se ela sabe o nome do nosso cão novo, o Tobias, ou se se lembra do cheiro do arroz doce que fazia questão de comer ao pequeno-almoço quando era miúda.
Lembro-me de quando a Sofia era pequena. Corria pelo quintal da casa dos meus pais em Viseu, os cabelos castanhos sempre embaraçados pelo vento, as mãos sujas de terra e um sorriso que iluminava tudo à volta. Era uma criança feliz, curiosa, cheia de perguntas e sonhos. Queria ser veterinária, depois astronauta, depois professora. E eu acreditava que podia ser tudo isso e muito mais.
Mas a vida foi-se complicando. O divórcio dos meus pais abalou-nos a todos. O António perdeu o emprego durante a crise e tivemos de apertar o cinto. A Sofia cresceu a ver-nos discutir contas e preocupações. Talvez tenha sido aí que comecei a perdê-la.
Quando ela entrou na universidade em Coimbra, senti um orgulho imenso. Fizemos um esforço enorme para lhe pagar o quarto e as propinas. Ela prometeu visitar-nos todos os fins-de-semana. No início cumpriu. Depois as visitas tornaram-se mensais. Agora só nos liga quando precisa de dinheiro.
O António diz que temos de ser firmes:
— Não podemos continuar assim, Maria do Carmo. Ela tem de aprender a viver sozinha.
Mas como é que uma mãe diz não à filha? Como é que se fecha a porta a quem demos tudo?
Esta noite não consigo dormir. Fico a olhar para o teto do quarto escuro, ouvindo o António ressonar baixinho ao meu lado. Penso em ligar-lhe eu à Sofia, perguntar-lhe como está realmente, mas tenho medo da rejeição. Medo de ouvir aquele silêncio frio outra vez.
No dia seguinte vou ao mercado comprar fruta. Encontro a Dona Emília, vizinha de sempre.
— Então, Maria do Carmo, novidades da tua menina?
Sorrio sem vontade:
— Está bem… anda muito ocupada com os estudos.
Mentira piedosa. Não quero que saibam que mal falo com a minha filha. Que só sou mãe quando há dinheiro envolvido.
À noite, o António insiste:
— Temos de falar com ela seriamente. Isto não pode continuar.
Decidimos ligar-lhe juntos. Ela atende ao terceiro toque.
— Olá mãe… olá pai…
— Sofia — começo eu — precisamos de falar contigo. Não é só sobre dinheiro…
Ela suspira alto:
— Eu sei o que vão dizer. Que só vos procuro quando preciso de alguma coisa. Mas vocês não percebem como é difícil aqui! Toda a gente tem dinheiro menos eu! Não quero ser a pobre do grupo!
O António tenta intervir:
— Filha, nós também já passámos dificuldades…
— Não é igual! — grita ela — Vocês não sabem o que é sentir vergonha por não poder sair com os amigos ou comprar um café! Eu odeio isto!
Ficamos em silêncio. Sinto-me impotente diante da dor dela e da minha própria dor.
— Sofia — digo baixinho — nós amamos-te muito. Só queremos saber se estás bem…
Ela chora do outro lado da linha. Pela primeira vez em muito tempo sinto que estamos realmente a falar.
— Desculpem… eu só… às vezes sinto-me tão sozinha aqui…
O António olha para mim com lágrimas nos olhos. Finalmente compreendo: por trás dos pedidos de dinheiro há uma filha perdida no meio das suas próprias inseguranças e medos.
— Queres vir passar o fim-de-semana connosco? Fazemos arroz doce… como quando eras pequena.
Ela hesita:
— Talvez… sim… gostava disso.
Desligamos com promessas tímidas de reencontro. Sinto um alívio estranho misturado com medo: será desta vez diferente?
No sábado seguinte preparo tudo como antigamente: arroz doce com canela em pó, pão-de-ló acabado de sair do forno, flores frescas na mesa da cozinha. O António vai buscá-la à estação.
Quando entra em casa vejo nos olhos dela uma mistura de vergonha e saudade. Abraçamo-nos demoradamente. Durante o jantar falamos pouco mas rimos das histórias antigas: as quedas no quintal, as birras por causa dos legumes, as noites em que adormecia no sofá ao colo do pai.
Antes de ir embora ela diz-me baixinho:
— Mãe… desculpa se te magoei… às vezes sinto-me perdida e não sei pedir ajuda sem ser assim…
Aperto-lhe as mãos entre as minhas:
— Não faz mal filha… estamos aqui para ti… sempre.
Vejo-a partir no comboio e fico a pensar: será possível reconstruir uma relação feita de silêncios e pedidos? Ou estaremos condenadas a este ciclo de distância e saudade?
Às vezes pergunto-me: quantas mães vivem este mesmo vazio? Quantas esperam por um telefonema que traga mais do que pedidos? E vocês… também sentem falta de alguém assim?