O Silêncio dos Meus Filhos

— Mãe, não podes continuar a ligar-lhe todos os dias. O Miguel já disse que está ocupado, tens de aceitar — a voz da Inês ecoou pela cozinha, misturada com o cheiro do café acabado de fazer. Olhei para ela, sentada à mesa, os olhos cansados mas firmes. Senti um aperto no peito, como se cada palavra dela fosse um lembrete do vazio que se instalou cá em casa.

A minha casa em Benfica sempre foi cheia de vozes. Quando o António e eu nos mudámos para aqui, há quarenta anos, sonhámos com uma família grande. Tive três filhos — o Miguel, o Rui e o Pedro — e duas filhas — a Inês e a Sofia. Cresceram todos juntos, entre risos, discussões e o cheiro a sopa de legumes que parecia nunca sair das paredes.

Mas agora, só as minhas filhas me visitam. O António partiu há seis anos, num inverno frio que nunca mais me saiu dos ossos. Desde então, a casa ficou maior e mais fria. Os meus filhos… ah, os meus filhos! O Miguel vive no Porto, diz que o trabalho não lhe dá descanso. O Rui está em Faro, casado com uma mulher que nunca me aceitou verdadeiramente. O Pedro… esse foi para Londres há dez anos e só volta no Natal — quando volta.

— Não percebes, Inês? Eu só quero ouvir a voz dele. Saber se está bem — respondi-lhe, tentando conter as lágrimas. Ela levantou-se e abraçou-me.

— Eu sei, mãe. Mas tens de te proteger também. Não podes viver à espera de telefonemas.

A Sofia entrou na cozinha nesse momento, trazendo um saco de compras.

— Trouxe-te aquelas bolachas que gostas — disse, pousando-as na bancada. Sorri-lhe, agradecida pelo gesto pequeno mas cheio de significado.

Lembro-me de quando eram pequenos. O Miguel era o mais protetor dos irmãos; o Rui, sempre rebelde; o Pedro, sensível e sonhador. As meninas eram as minhas confidentes desde cedo. Mas com os rapazes… havia sempre uma distância que eu não sabia explicar.

Uma vez, quando o Miguel tinha quinze anos, ouvi-o discutir com o pai na sala.

— Não quero ser engenheiro! Quero estudar música! — gritou ele.

O António respondeu-lhe com dureza:

— Música não dá futuro a ninguém neste país! Vais estudar engenharia e ponto final!

Fiquei na cozinha, a ouvir tudo em silêncio. Nunca tive coragem de intervir. Talvez aí tenha começado o afastamento. Talvez tenha falhado como mãe por não ter defendido os sonhos dos meus filhos.

Os anos passaram depressa demais. O Rui começou a sair de casa cada vez mais tarde, a chegar cada vez mais tarde também. Uma noite, apareceu bêbado e zangado.

— Ninguém aqui me entende! — atirou ele, antes de bater com a porta do quarto.

O Pedro era diferente. Escrevia poemas que escondia nas gavetas do quarto. Um dia encontrei um deles:

“Mãe,
Se soubesses das noites em que choro,
Talvez me abraçasses mais forte,
Talvez ouvisses o silêncio entre as palavras.”

Guardei aquele papel até hoje, dobrado dentro do meu livro de receitas.

Quando os rapazes começaram a sair de casa, senti um vazio que tentei preencher com telefonemas e mensagens. Mas eles foram-se afastando cada vez mais. O Miguel raramente atende as chamadas; o Rui responde com monossílabos; o Pedro manda mensagens curtas: “Está tudo bem, mãe.” Nada mais.

As minhas filhas são diferentes. A Inês vem cá todos os sábados ajudar-me com as compras; a Sofia liga-me todas as noites antes de dormir. São elas que me levam ao médico, que me ouvem quando preciso desabafar.

Mas os meus filhos…

No Natal passado, tentei juntar toda a família cá em casa. Preparei tudo como antigamente: bacalhau com natas, rabanadas, sonhos. A Sofia ajudou-me na cozinha; a Inês decorou a sala com luzes coloridas.

O Miguel chegou atrasado, com ar cansado e olhar distante. O Rui veio sozinho — disse que a mulher estava doente (mas eu sabia que era mentira). O Pedro não veio: “Não consegui voo”, escreveu ele numa mensagem seca.

Durante o jantar, tentei puxar conversa:

— Lembram-se daquele verão em Sesimbra? Quando quase perdemos o Rui no mar?

O Miguel sorriu sem entusiasmo; o Rui olhou para o telemóvel; silêncio pesado caiu sobre nós.

Depois do jantar, fui arrumar a cozinha sozinha. Ouvi-os na sala a falar sobre futebol e política — temas seguros, sem emoção. Senti-me invisível na minha própria casa.

Quando todos foram embora, sentei-me à mesa da cozinha e chorei baixinho para não acordar as vizinhas.

Na semana seguinte tentei ligar ao Pedro:

— Olá filho…

— Mãe, estou numa reunião agora. Depois falo contigo — desligou antes que eu pudesse dizer mais alguma coisa.

Fiquei ali sentada com o telefone na mão, a olhar para a parede branca à minha frente.

Pergunto-me muitas vezes onde errei. Será que fui demasiado exigente? Ou demasiado permissiva? Será que devia ter defendido mais os sonhos deles? Ou talvez tenha dado demasiado espaço?

A Inês diz-me sempre:

— Mãe, cada um faz as suas escolhas. Não é culpa tua.

Mas eu não consigo deixar de sentir este peso no peito.

Às vezes sonho com eles pequenos outra vez: o Miguel a correr pelo corredor com uma capa de super-herói; o Rui a construir castelos de Legos; o Pedro a desenhar estrelas no caderno da escola. Acordo desses sonhos com lágrimas nos olhos e uma saudade impossível de explicar.

A solidão pesa mais à noite. Sento-me na varanda a ver as luzes da cidade e penso em tudo o que ficou por dizer. Queria ter dito ao Miguel que tinha orgulho nele mesmo quando escolheu outro caminho; ao Rui que compreendia a sua raiva; ao Pedro que lia os seus poemas às escondidas e chorava por dentro.

Agora resta-me esperar por telefonemas que raramente chegam e pelas visitas das minhas filhas que são o meu porto seguro.

Se pudesse voltar atrás… faria tudo diferente? Não sei. Talvez só tivesse tentado ouvir mais e falar menos.

E vocês? Já sentiram este silêncio dos vossos filhos? Como se preenche um vazio feito de palavras não ditas?