O Silêncio do Meu Filho: Quando o Amor se Torna Peso
— Ricardo, vais jantar connosco hoje? — perguntei, tentando esconder o tremor na voz enquanto pousava a travessa de bacalhau à Brás na mesa. Ele nem levantou os olhos do telemóvel, apenas murmurou um “não tenho fome”, tão baixo que quase se confundiu com o zumbido do frigorífico.
O silêncio caiu sobre a cozinha como um manto pesado. O meu marido, António, olhou-me de soslaio, mas não disse nada. Já tínhamos discutido demasiado sobre isto — sobre o Ricardo, sobre a Sofia, sobre o que se passava naquela casa que já não era a mesma desde que ele casara.
Lembro-me do dia em que o Ricardo me apresentou a Sofia. Era uma tarde de primavera, e ele parecia feliz, com aquele sorriso tímido que sempre me derretia. Sofia era bonita, educada, mas havia nela uma frieza que me deixou inquieta. Pensei que era só nervosismo, mas agora pergunto-me se não era já um prenúncio do que viria.
O casamento foi simples, na igreja da nossa freguesia. Todos diziam que faziam um par bonito. Mas logo nos primeiros meses notei que algo mudara no meu filho. Deixou de vir cá a casa aos domingos, começou a evitar os jantares de família. Quando vinha, estava calado, ausente, como se estivesse sempre noutro lugar.
— O Ricardo está diferente — confidenciei à minha irmã, Teresa, numa tarde em que tomávamos café na varanda.
— Achas que é da Sofia? — perguntou ela, franzindo o sobrolho.
— Não sei… às vezes parece que ela não gosta de nós. Ou talvez seja só impressão minha.
Mas não era só impressão. Com o tempo, as visitas tornaram-se cada vez mais raras. Quando ligava ao Ricardo, era sempre a Sofia quem atendia. “Ele está ocupado”, dizia ela, com aquela voz seca. Comecei a sentir-me uma estranha na vida do meu próprio filho.
Uma noite, não aguentei mais e fui até à casa deles. Toquei à campainha e esperei. Sofia abriu a porta, olhou-me de cima a baixo e disse:
— Mariana, não avisou que vinha.
— Preciso de falar com o Ricardo.
Ela hesitou antes de me deixar entrar. A casa estava impecável, mas fria, sem uma única fotografia de família à vista. O Ricardo apareceu na sala pouco depois, com ar cansado.
— Mãe… está tudo bem?
— Precisava de te ver — respondi, tentando sorrir.
Sofia ficou ali ao lado dele, braços cruzados. Senti-me intrusa na vida do meu próprio filho. Conversámos pouco; ele parecia sempre medir as palavras. Quando saí dali, chorei no carro durante meia hora.
O tempo passou e as coisas só pioraram. O António dizia para eu não me meter:
— O rapaz já é homem feito. Tem de resolver as coisas dele.
Mas como é que uma mãe consegue ficar quieta quando vê o filho definhar?
Um dia, recebi uma chamada do Ricardo às três da manhã. A voz dele tremia:
— Mãe… posso ir aí?
O coração quase me saltou do peito.
— Claro que sim! Estou à tua espera.
Quando chegou, parecia um fantasma: olheiras fundas, barba por fazer, roupa amarrotada. Sentou-se à mesa da cozinha e ficou em silêncio durante minutos intermináveis.
— O que se passa, filho?
Ele olhou para mim com os olhos marejados:
— Não aguento mais…
O nó na garganta apertou-se ainda mais.
— Ela controla tudo… até o dinheiro do meu ordenado vai para a conta dela. Não posso sair com os amigos, não posso vir cá sem avisar… Sinto-me preso.
Abracei-o com força. Senti-o tremer nos meus braços como quando era pequeno e tinha pesadelos.
— Tens de falar com ela… tens de te impor — disse-lhe, mas sabia que não era assim tão simples.
Nos dias seguintes tentei convencê-lo a procurar ajuda. Falei-lhe em terapia de casal, em conversar com o padre da paróquia… Mas ele só abanava a cabeça.
— Ela ameaça ir-se embora se eu reclamar. Diz que nunca vou encontrar ninguém melhor do que ela…
A raiva misturava-se com impotência dentro de mim. Queria protegê-lo, mas sentia-me inútil.
Certa noite, durante um jantar de família — um dos poucos em que ele apareceu — houve uma discussão feia. O António perguntou-lhe porque andava tão calado e a Sofia respondeu por ele:
— O Ricardo anda cansado porque trabalha demais. Não é preciso fazer um drama por tudo.
O António levantou-se da mesa:
— Aqui ninguém faz drama nenhum! O rapaz tem direito a sentir-se cansado!
O ambiente ficou insuportável. A Sofia pegou na mala e saiu porta fora. O Ricardo foi atrás dela sem dizer uma palavra.
Depois desse dia, deixou de atender as minhas chamadas. Passei noites em claro a olhar para o telemóvel à espera de uma mensagem dele. Cheguei a ir ao trabalho dele só para ter a certeza de que estava bem.
Um domingo à tarde, apareceu finalmente em casa. Sentou-se comigo no jardim e ficou a olhar para as mãos durante muito tempo antes de falar:
— Mãe… vou separar-me da Sofia.
O alívio misturou-se com medo.
— Tens a certeza?
Ele assentiu.
— Não posso continuar assim… Sinto que perdi quem sou.
Abracei-o outra vez e prometi-lhe que estaria sempre ali para ele. Mas sabia que o caminho seria difícil — para ele e para todos nós.
Hoje olho para trás e pergunto-me: onde foi que falhei? Devia ter feito mais? Ou há dores que nem o amor de mãe consegue curar?
E vocês? Já sentiram esse silêncio crescer entre vocês e alguém que amam? Será que há perguntas que nunca devemos deixar por fazer?