O Silêncio das Paredes: O Dilema de um Vizinho em Lisboa

— Não chores, Tomás, por favor… — ouvi a voz abafada de Dona Lurdes, a minha vizinha do lado, através da parede fina do meu novo apartamento. Era a terceira noite seguida que escutava os soluços do pequeno Tomás, o filho dela, misturados com discussões abafadas e móveis a serem arrastados. O prédio antigo, no coração de Lisboa, tinha paredes que guardavam segredos — mas não os escondiam.

Quando finalmente consegui comprar este apartamento, depois de anos a juntar cada cêntimo e a abdicar de férias, festas e até de pequenos luxos, achei que estava a entrar numa nova fase da minha vida. O bairro era calmo, perto do meu trabalho no Hospital de Santa Maria, e o preço parecia um milagre nestes tempos de rendas impossíveis. Mas nunca imaginei que o verdadeiro desafio não seria pagar a hipoteca, mas sim lidar com o peso do que acontecia mesmo ao lado.

Na primeira semana, tentei ignorar. Afinal, quem sou eu para me meter na vida dos outros? Mas as noites tornaram-se cada vez mais longas. Ouvia Tomás a chorar baixinho, ouvia Dona Lurdes a tentar acalmá-lo, e por vezes o tom áspero do marido dela, o senhor António. Não eram gritos de violência física — pelo menos não que eu percebesse — mas havia uma tensão constante, um desespero que atravessava as paredes como se fossem papel.

Uma noite, ao regressar do turno da noite no hospital, cruzei-me com Dona Lurdes nas escadas. Trazia sacos pesados e um olhar perdido.

— Boa noite, Dona Lurdes. Precisa de ajuda com os sacos? — perguntei, tentando soar casual.

Ela hesitou um segundo antes de aceitar.

— Obrigada, vizinho. Isto hoje está mais pesado do que o costume…

Enquanto subíamos as escadas estreitas, reparei nas olheiras fundas dela e nas mãos trémulas.

— O Tomás está bem? — arrisquei perguntar.

Ela sorriu, mas foi um sorriso triste.

— Está… Está a passar uma fase difícil na escola. Sabe como é…

Assenti, mas algo me dizia que havia mais. Muito mais.

No dia seguinte, encontrei Tomás no pátio do prédio. Estava sozinho, sentado num degrau, a desenhar no chão com um pau.

— Olá, Tomás. O que desenhas aí?

Ele olhou para mim com olhos grandes e assustados.

— Nada… Só rabiscos.

Sentei-me ao lado dele.

— Sabes que também gosto de desenhar? Quando era pequeno desenhava monstros para afastar os medos.

Ele olhou para mim, curioso.

— E resultava?

Sorri.

— Às vezes. Outras vezes só ajudava a não pensar tanto nos problemas.

Ele baixou os olhos e continuou a riscar o chão.

— A minha mãe chora muito — murmurou ele de repente. — E o pai grita…

O meu coração apertou-se. Não sabia o que dizer. Não queria invadir a privacidade deles, mas também não podia fingir que não ouvia nem via nada.

Nessa noite, os gritos foram mais altos. Oiço António a discutir com Lurdes sobre dinheiro. Palavras como “despedimento”, “contas”, “não aguento mais” ecoam pela casa. Tomás chora baixinho no quarto ao lado do meu. Sinto-me impotente. Deveria fazer alguma coisa? Ligar para alguém? Falar com eles?

No trabalho, partilhei a minha angústia com a minha colega Filipa.

— Se fosse contigo? — perguntei-lhe. — O que fazias?

Ela suspirou.

— É complicado… Se te metes demasiado podes piorar as coisas. Mas ignorar também não é solução. Talvez falar com a escola do miúdo? Ou com a Junta de Freguesia?

Passei dias a pensar nisso. Comecei a reparar em pequenos detalhes: Dona Lurdes cada vez mais magra; António a sair cedo e a chegar tarde; Tomás sempre calado, sempre sozinho. Uma tarde ouvi um estrondo vindo do apartamento deles. Corri para o corredor e bati à porta.

— Está tudo bem? — perguntei alto.

A porta abriu-se uma fresta. Era Dona Lurdes, com os olhos vermelhos.

— Está sim… Foi só um acidente na cozinha.

Mas vi Tomás atrás dela, agarrado ao boneco velho, com medo estampado no rosto.

Nessa noite não consegui dormir. O peso da indecisão esmagava-me. E se algo grave acontecesse? E se eu pudesse ter evitado?

No fim-de-semana seguinte, cruzei-me com António à porta do prédio. Estava visivelmente alterado, cheiro forte a álcool.

— Bom dia — disse eu, tentando manter a calma.

Ele olhou para mim com desdém.

— Bom dia… vizinho curioso — respondeu ele com sarcasmo.

Senti um arrepio na espinha. Será que já tinha notado o meu interesse pela família?

Os dias passaram e comecei a ver Tomás cada vez menos. As persianas do apartamento deles estavam quase sempre fechadas. Um dia ouvi sirenes na rua e vi uma ambulância à porta do prédio. O meu coração disparou. Corri escadas abaixo e vi Dona Lurdes sentada na ambulância, pálida como cal.

— O que aconteceu? — perguntei à vizinha do rés-do-chão.

— Dizem que foi um desmaio… Ela anda tão fraca…

Fiquei ali parado, sentindo-me inútil. Queria fazer algo mais do que apenas assistir ao sofrimento deles através das paredes.

Na segunda-feira seguinte fui à escola primária do bairro. Pedi para falar com a professora de Tomás.

— Ele tem estado muito calado — disse ela. — Já tentei falar com os pais mas dizem sempre que está tudo bem…

Saí da escola ainda mais angustiado. Senti-me um intruso mas também responsável por não fazer nada.

Nessa noite escrevi uma carta anónima para a Junta de Freguesia a relatar o que sabia: as discussões constantes, o isolamento de Tomás, o estado frágil de Dona Lurdes. Não sabia se estava a fazer bem ou mal — mas não podia continuar indiferente.

Os dias seguintes foram estranhos: vi assistentes sociais à porta do prédio; ouvi António aos gritos ao telefone; vi Dona Lurdes chorar no pátio enquanto Tomás lhe segurava na mão.

Depois disso, as coisas mudaram lentamente. António deixou de aparecer tanto; Dona Lurdes começou a sair mais vezes com Tomás; até me cumprimentavam com um sorriso tímido no elevador. Nunca soube ao certo o que aconteceu — se foi a minha carta ou outra coisa qualquer — mas senti algum alívio por ver sinais de esperança naquela família.

Agora passo pelos corredores do prédio e penso em quantas histórias como esta se escondem atrás das portas fechadas das casas lisboetas. Quantos vizinhos vivem dramas silenciosos enquanto nós fingimos não ouvir?

Às vezes pergunto-me: será que fiz o suficiente? Ou será que há sempre algo mais que podemos fazer pelos outros sem invadir demasiado as suas vidas? E vocês? O que fariam no meu lugar?