O Silêncio da Casa de Meu Irmão: Entre o Sacrifício e o Esquecimento

— Não me venhas com desculpas, Leonor! — gritou o meu irmão António ao telefone, a voz embargada pela raiva e pelo cansaço. — Só te peço que venhas ver o teu pai. Não é pedir muito!

Do outro lado, apenas silêncio. Eu estava sentado na sala dele, aquela sala onde tantas vezes rimos juntos, agora tomada por um cheiro a medicamentos e a solidão. António pousou o telemóvel com força na mesa, as mãos a tremerem. Olhou para mim, os olhos vermelhos, e murmurou:

— Eles já não querem saber de mim, Miguel. Dei-lhes tudo… tudo.

Lembro-me de quando éramos miúdos, eu e o António. Crescemos em Almada, numa casa pequena mas cheia de vida. O nosso pai era serralheiro, a mãe costureira. Não havia luxos, mas havia amor e respeito. Sempre achei que a família era o nosso maior tesouro. António seguiu esse exemplo à risca — talvez até demais.

Quando casou com a Teresa, parecia que nada podia correr mal. Tiveram dois filhos: Leonor e Ricardo. António trabalhava horas sem fim na construção civil, fazia biscates ao fim de semana, só para garantir que nada lhes faltava. Lembro-me de o ver chegar a casa com as mãos calejadas, mas com um sorriso no rosto quando via os miúdos.

— O que interessa é eles terem oportunidades que nós nunca tivemos — dizia-me muitas vezes.

A Teresa adoeceu cedo. Cancro da mama. António ficou sozinho com os filhos ainda pequenos. Nunca se queixou. Fez-se de mãe e de pai, cozinhava, lavava roupa, ajudava nos trabalhos de casa. Recusou-se a refazer a vida com outra mulher — dizia que os filhos eram tudo.

Os anos passaram depressa demais. Leonor foi para a universidade em Lisboa, Ricardo arranjou trabalho numa loja de informática. António continuava a trabalhar até tarde, mesmo quando já lhe custava subir escadas ou carregar sacos de cimento.

— Pai, não precisas de trabalhar tanto — dizia-lhe Leonor nas raras vezes em que vinha a casa.

— Enquanto puder ajudar-vos, ajudo — respondia ele, orgulhoso.

Mas o corpo começou a falhar-lhe. Primeiro foi uma tosse persistente, depois dores nas costas. Só foi ao médico quando já não conseguia levantar-se da cama. Diagnóstico: cancro do pulmão avançado.

Foi aí que tudo mudou.

No início, os filhos ainda apareciam. Leonor vinha aos fins-de-semana, Ricardo passava para deixar compras. Mas rapidamente as visitas rarearam. Sempre havia uma desculpa: trabalho, exames, falta de tempo.

— Eles têm as suas vidas — dizia António, tentando convencer-se mais do que me convencer a mim.

Mas eu via-o definhar não só por causa da doença, mas pela ausência deles. A casa ficou mais fria, mais escura. Eu fazia o que podia: levava-lhe sopa quente, conversava sobre futebol ou política para animá-lo. Mas não era o mesmo.

Uma noite, acordei com o telefone a tocar. Era António.

— Miguel… não consigo respirar bem…

Corri para lá. Encontrei-o sentado na cama, ofegante, os olhos cheios de medo.

— Já ligaste à Leonor? Ao Ricardo? — perguntei enquanto lhe segurava a mão.

Ele abanou a cabeça.

— Não quero incomodar… Eles têm as suas vidas…

Levei-o ao hospital. Fiquei ao lado dele durante horas na sala de espera fria e impessoal. Quando finalmente consegui falar com Leonor, ela disse apenas:

— Não posso sair do trabalho agora…

Ricardo nem atendeu.

António saiu do hospital mais fraco do que nunca. Os médicos disseram que era uma questão de tempo.

Nos dias seguintes tentei convencer os sobrinhos a visitarem-no.

— O vosso pai precisa de vocês! — insisti à Leonor ao telefone.

— Eu sei… mas é difícil… não sei lidar com isto…

— Não é sobre ti! É sobre ele! — gritei sem conseguir conter a frustração.

No fim de semana seguinte, Leonor apareceu finalmente. Entrou na casa como se fosse uma estranha. Olhou para o pai na poltrona e hesitou antes de se aproximar.

— Olá, pai…

António sorriu, um sorriso triste mas genuíno.

— Olá filha…

Falaram pouco. Ela saiu ao fim de meia hora, dizendo que tinha um compromisso.

Ricardo só apareceu no funeral.

Naquela manhã cinzenta no cemitério de Almada, vi os meus sobrinhos chorarem lágrimas silenciosas enquanto o caixão descia à terra fria. Perguntei-me se choravam pelo pai ou pela culpa.

Depois do funeral, sentei-me sozinho na sala vazia da casa do António. Olhei para as fotografias nas paredes: António jovem com Teresa e os filhos pequenos; António no batizado da Leonor; António a segurar Ricardo nos ombros num piquenique no parque da Paz.

Onde foi que tudo se perdeu? Em que momento deixámos de valorizar quem nos deu tudo?

Dias depois do funeral, Leonor ligou-me.

— Tio Miguel… desculpa… eu devia ter estado mais presente…

A voz dela tremia do outro lado da linha.

— Agora já é tarde, filha — respondi suavemente. — O teu pai só queria sentir-se amado nos últimos dias.

Ela chorou baixinho antes de desligar.

Hoje passo muitas vezes pela casa do meu irmão. O jardim está abandonado, as janelas fechadas. Às vezes sento-me no banco da entrada e penso em tudo o que aconteceu.

Será que falhámos como família? Será que esta pressa dos dias modernos nos faz esquecer quem realmente importa? Quantos Antónios existem por aí, esquecidos pelos próprios filhos?

E vocês? O que fariam diferente? Será que ainda vamos a tempo de mudar alguma coisa?