O Segredo Que Nunca Contei à Minha Mãe: O Peso de Ser a Nora de Dona Lurdes

— Não consigo, Mariana. Não consigo mesmo. — A voz do Ricardo tremia, os olhos fixos no chão da nossa cozinha minúscula, enquanto eu segurava a chávena de café com tanta força que temi parti-la.

— Mas ela vai perguntar de novo, Ricardo! Já não aguento mais mentir! — respondi, sentindo o nó na garganta apertar-se ainda mais.

Era sempre assim. Desde que casámos, há três anos, Dona Lurdes era uma presença constante, quase sufocante. Ligava-nos todos os dias, aparecia sem avisar, criticava as minhas escolhas — desde o tapete da sala até ao molho do bacalhau à Brás. Mas o pior veio quando começámos a tentar ter filhos e nada acontecia.

No início, tentei ignorar os comentários dela:

— Então, Mariana, quando é que me dás um netinho? Já viste a idade que tens? — dizia ela, com aquele sorriso de quem sabe tudo.

Ricardo encolhia-se sempre que ela tocava no assunto. Eu tentava rir, mudar de tema, mas sentia o olhar dela cravar-se em mim como uma faca. Até que veio o diagnóstico: Ricardo era infértil. O médico foi claro e humano, mas as palavras dele soaram como uma sentença de morte ao nosso sonho.

— Não digas nada à minha mãe — pediu-me Ricardo, naquela noite, com lágrimas nos olhos. — Ela nunca vai entender. Vai culpar-te a ti ou pior… vai culpar-me e eu não aguento.

Aceitei. Por amor, por medo de o perder, por não saber o que fazer. Mas os meses passaram e Dona Lurdes tornou-se ainda mais insistente. Começou a trazer folhetos de clínicas de fertilidade, chás milagrosos, até um terço benzido por um padre de Fátima.

Uma noite, depois de mais uma discussão abafada no quarto — para ela não ouvir do corredor — explodi:

— Isto não é justo! Não posso ser eu a carregar este segredo sozinha! Não posso ser eu a levar com as bocas dela!

Ricardo chorou. Pela primeira vez vi-o realmente frágil, despedaçado. Senti pena dele, mas também raiva. Raiva por ele não ser capaz de enfrentar a mãe. Raiva por me deixar sozinha nesta guerra.

Os dias tornaram-se pesados. Comecei a evitar jantares de família. Inventava desculpas para não ir à casa dos pais dele ao domingo. Mas Dona Lurdes não desistia:

— Mariana, tu não gostas da família do Ricardo? — perguntava ela, com aquele tom passivo-agressivo que só as mães portuguesas sabem usar.

Uma tarde de inverno, enquanto chovia torrencialmente lá fora e eu tentava ler um livro para me distrair, ouvi a campainha. Era ela, claro.

— Vim só trazer-te umas coisinhas do mercado — disse, entrando sem esperar convite.

Sentou-se à mesa da cozinha e começou:

— Mariana, já falei com o padre António. Ele disse que às vezes é preciso ter fé. Mas também tens de fazer por isso. Já pensaste em ir ao médico? Às vezes são coisas simples nas mulheres…

Senti o sangue ferver-me nas veias. Olhei para ela e vi uma mulher desesperada por controlar tudo à sua volta, incapaz de aceitar que nem sempre a vida corre como queremos.

— Dona Lurdes… — comecei, mas as palavras ficaram-me presas na garganta.

Ela continuou:

— O Ricardo sempre quis ser pai. Desde pequeno! Eu lembro-me dele a brincar com bonecos, a dizer que ia ter muitos filhos…

Nesse momento percebi: nunca seria suficiente para ela. Nunca seria a nora perfeita. Nunca seria capaz de lhe dar aquilo que ela mais queria.

Quando Ricardo chegou a casa nessa noite, encontrou-me sentada no chão da casa de banho, a chorar baixinho.

— Mariana… desculpa… — murmurou ele, ajoelhando-se ao meu lado.

— Não posso mais — sussurrei. — Ou tu falas com ela ou eu vou embora.

Ele prometeu que ia falar. Mas os dias passaram e nada mudou. Até que numa manhã de sábado, Dona Lurdes apareceu outra vez sem avisar. Encontrou-nos aos gritos na sala:

— Eu não sou menos mulher por não poder ter filhos! — gritava eu.

Ela ficou parada à porta, pálida.

— O que é que se passa aqui? — perguntou.

Ricardo olhou para mim com olhos suplicantes. Eu sabia o que ele queria: que eu dissesse por ele aquilo que ele nunca teve coragem de dizer.

Respirei fundo e disse:

— Dona Lurdes… o problema não sou eu. O Ricardo… ele não pode ter filhos.

O silêncio foi ensurdecedor. Ela olhou para o filho como se não o reconhecesse.

— Isso é verdade? — perguntou-lhe.

Ricardo chorou como nunca o tinha visto chorar. Ela sentou-se devagarinho no sofá e ficou ali calada durante minutos que pareceram horas.

No fim levantou-se e saiu sem dizer palavra.

A partir desse dia nada voltou a ser igual. Ricardo fechou-se ainda mais nele próprio. Dona Lurdes deixou de me ligar todos os dias mas também deixou de me olhar nos olhos quando nos cruzávamos na rua ou nos poucos jantares de família a que ainda fui.

O nosso casamento foi morrendo aos poucos. A culpa instalou-se entre nós como uma parede invisível. Tentámos terapia, tentámos viagens para recomeçar do zero, mas nada resultou.

Acabámos por nos separar um ano depois. Ele voltou para casa da mãe durante uns meses; eu mudei-me para Lisboa e recomecei do zero.

Hoje olho para trás e pergunto-me: teria sido diferente se ele tivesse tido coragem? Teria sido diferente se eu tivesse dito logo a verdade? Ou será que há segredos que simplesmente destroem tudo à sua volta?

E vocês? Acham que devemos carregar os segredos dos outros ou enfrentar logo a verdade — mesmo quando dói?