O Segredo Escondido na Cave: O Diário do Meu Marido
— O que é isto? — murmurei, soprando o pó de um caderno de capa preta, escondido no fundo de uma caixa velha, atrás das decorações de Natal e dos livros escolares dos nossos filhos. O cheiro a mofo misturava-se com a ansiedade que me subia pelo peito. Era sábado de manhã e António tinha ido ao mercado. Eu aproveitava para arrumar a cave, como tantas vezes fazia, mas nunca imaginei que aquela manhã mudaria tudo.
Sentei-me no degrau frio, com o diário nas mãos. O nome dele, António Silva, estava escrito a caneta azul na primeira página, com uma data: 1998. O ano em que nos conhecemos. O coração batia-me tão forte que quase não ouvia o silêncio à minha volta. Hesitei. Tinha direito a ler aquilo? Mas a curiosidade foi mais forte. Abri o diário.
“Hoje vi a Ana pela primeira vez. Ela sorriu-me no café da Dona Lurdes. Nunca pensei que alguém pudesse mexer tanto comigo. Senti-me um miúdo outra vez.”
Ana? O meu nome é Marta. Senti um frio na barriga. Continuei a ler, incapaz de parar.
“A Ana tem namorado, mas não consigo deixar de pensar nela. Ontem sonhei que fugíamos juntos para o Algarve, só nós os dois, sem ninguém a julgar-nos.”
As páginas seguintes eram uma mistura de declarações apaixonadas e relatos de encontros secretos. Descobri que António teve um caso intenso com esta Ana durante quase dois anos — precisamente os anos em que começámos a sair juntos. Ele escrevia sobre os dilemas, sobre o medo de magoar-me, sobre as promessas que fazia a si próprio de terminar tudo com ela… mas nunca teve coragem.
As mãos tremiam-me. Lembrei-me das noites em que ele chegava tarde, das desculpas esfarrapadas sobre trabalho extra ou jantares com amigos. Sempre confiei nele. Sempre achei que era diferente do meu pai, que também tinha segredos e traições escondidas.
Continuei a ler, como se precisasse de me magoar mais.
“Hoje disse à Ana que não podia continuar. Ela chorou. Senti-me o pior homem do mundo. Mas não posso perder a Marta. Ela é boa demais para mim. Não merece isto.”
Fechei o diário com força. As lágrimas caíam-me pelo rosto sem eu dar conta. Senti-me traída, enganada, usada como um prémio de consolação depois de uma paixão proibida.
Oiço passos na escada da cave. António aparece à porta, com um saco de laranjas na mão e um sorriso distraído.
— Estás bem? — pergunta ele, ao ver-me sentada no chão.
— Encontrei isto — digo, mostrando-lhe o diário.
O sorriso dele desaparece num instante. Fica pálido como cal.
— Marta… isso é antigo…
— Antigo? — interrompo-o, a voz embargada pela raiva e pela dor. — Tu mentiste-me durante anos! Fizeste-me acreditar que era especial, quando afinal era só a segunda escolha!
Ele aproxima-se devagar, pousa o saco no chão.
— Não é verdade… Eu amei-te sempre…
— Então porque é que escrevias aquelas coisas? Porque é que me escondeste isto?
António baixa os olhos. Pela primeira vez em vinte anos vejo-o vulnerável, pequeno.
— Tive medo de te perder. Tive medo de ser igual ao meu pai… Ele também traiu a minha mãe e destruiu tudo à volta dele. Eu jurei que nunca faria isso, mas falhei… E depois tu apareceste e salvaste-me de mim próprio.
As palavras dele soam sinceras, mas não chegam para tapar o buraco que se abriu dentro de mim.
— E se eu não tivesse encontrado este diário? Irias contar-me algum dia?
Ele abana a cabeça.
— Não sei… Talvez… Tinha vergonha…
Levanto-me devagar, sentindo o peso dos anos todos em cima dos ombros.
— Preciso de tempo — digo apenas, subindo as escadas sem olhar para trás.
Os dias seguintes são um tormento silencioso. António tenta falar comigo, mas eu fujo-lhe sempre. Os nossos filhos percebem que algo está errado e perguntam-me se estou doente. Minto-lhes, como tantas vezes fiz para proteger esta família das verdades feias do mundo.
À noite, olho para António a dormir ao meu lado e pergunto-me quem é este homem afinal. Será que alguma vez o conheci verdadeiramente? Ou será que todos temos segredos enterrados em caixas velhas na cave?
A minha mãe liga-me e percebo que preciso de desabafar com alguém.
— Mãe… achas que é possível perdoar uma traição antiga? Mesmo quando ela muda tudo?
Ela suspira do outro lado da linha.
— Filha… ninguém é perfeito. O importante é saber se ainda há amor suficiente para reconstruir a confiança…
Desligo sem saber a resposta. Passo horas a reler excertos do diário, à procura de sinais de redenção ou arrependimento verdadeiro.
Uma noite, António senta-se ao meu lado na sala escura.
— Marta… eu não posso apagar o passado. Só posso prometer-te que nunca mais te vou mentir. Amo-te mais do que alguma vez amei alguém.
Olho-o nos olhos e vejo ali o medo e o amor misturados.
— E se eu não conseguir esquecer? E se nunca mais conseguir confiar em ti?
Ele pega-me na mão.
— Então lutamos juntos. Ou desistimos juntos. Mas eu não vou desistir de ti sem lutar até ao fim.
Ficamos ali sentados em silêncio, cada um perdido nos seus pensamentos e dores antigas.
Hoje escrevo isto sem saber como vai acabar a nossa história. Talvez o tempo cure as feridas ou talvez elas fiquem sempre abertas, como cicatrizes invisíveis entre nós.
Pergunto-me: quantos casais vivem assim, lado a lado com segredos enterrados? Será possível recomeçar depois de descobrir uma verdade destas? O que fariam vocês no meu lugar?