O Segredo de Miguel: Entre Dívidas e Promessas Quebradas
— Miguel, o que é isto? — perguntei, segurando o extracto bancário com a mão a tremer. O silêncio na cozinha era tão pesado que quase me sufocava. Ele olhou para mim, os olhos castanhos arregalados, como se eu tivesse acabado de lhe apontar uma arma.
— Não é nada, Inês. Só um pagamento antigo… — tentou desviar o olhar, mas eu já conhecia aquele tom. O mesmo tom que usou quando me escondeu que tinha perdido o emprego há dois anos.
— Não me mintas. São transferências mensais para a conta da Carla. A tua ex-mulher. — A minha voz saiu mais alta do que queria, mas não consegui controlar. Senti o peito apertado, como se todo o chão da nossa casa em Almada tivesse desaparecido debaixo dos meus pés.
Ele suspirou fundo, passou as mãos pelo cabelo e sentou-se à mesa. — Ela precisava de ajuda… Está com problemas desde que perdeu o trabalho. Pediu-me um empréstimo há uns meses e…
— E decidiste esconder-me? — interrompi, sentindo as lágrimas a quererem saltar. — Depois de tudo o que passámos juntos, depois de prometeres nunca mais esconder nada de mim?
O Miguel ficou calado. O relógio da parede marcava 19h12. O jantar arrefecia no fogão, mas eu já não tinha fome. Sentei-me à frente dele, tentando controlar a raiva e a tristeza.
— Inês, eu só queria ajudar. Ela não tem ninguém… E sabes como é difícil arranjar trabalho nesta idade… — murmurou ele, quase num sussurro.
— E eu? Eu não sou ninguém? — atirei, sentindo-me ridícula por estar a competir com uma sombra do passado dele. — Achas justo esconder-me isto? Achas justo pôr em risco o nosso futuro por causa dela?
Ele abanou a cabeça, mas não respondeu. O silêncio voltou a cair sobre nós, pesado e frio.
Naquela noite, dormi no sofá. O cheiro do perfume dele ainda pairava no quarto e não consegui suportar. Passei horas a olhar para o tecto, a recordar todas as vezes que ele me prometeu honestidade. Lembrei-me do dia do nosso casamento na igreja de São João Baptista, das lágrimas dele ao dizer os votos: “Prometo amar-te e respeitar-te todos os dias da minha vida”.
Mas agora, tudo parecia uma mentira.
No dia seguinte, tentei agir normalmente. Preparei o pequeno-almoço para os nossos filhos, a Leonor e o Tomás, fingindo que estava tudo bem. Mas o Miguel evitava o meu olhar. Quando as crianças saíram para a escola, sentei-me com ele na sala.
— Temos de falar. — disse eu, sem rodeios.
Ele assentiu, os olhos vermelhos de uma noite mal dormida.
— Porque é que não confiaste em mim? — perguntei, tentando manter a voz firme.
— Tive medo que ficasses zangada… Que não compreendesses… — respondeu ele, encolhendo os ombros.
— E achas que agora compreendo? — atirei, sentindo uma dor aguda no peito. — Eu teria compreendido se me tivesses contado! Mas agora… agora sinto-me traída.
Ele tentou pegar na minha mão, mas afastei-a instintivamente.
— Inês… Eu amo-te. Isto não muda nada entre nós.
— Não muda? Como podes dizer isso? — levantei-me de repente, incapaz de ficar sentada ao lado dele. — Escondeste-me algo tão importante! Como posso confiar em ti outra vez?
Os dias seguintes foram um inferno. Discutíamos baixinho para não acordar as crianças. A minha mãe ligava todos os dias e eu fingia que estava tudo bem. No trabalho, mal conseguia concentrar-me; os colegas perguntavam se estava doente.
Uma noite, depois de mais uma discussão acesa, fui dormir à casa da minha irmã Sofia em Setúbal. Ela ouviu-me em silêncio enquanto eu desabafava entre soluços.
— Inês… Eu percebo que estejas magoada. Mas também percebo o Miguel… Ele sempre foi demasiado bom para o mundo — disse ela, com aquele jeito pragmático que sempre teve.
— Mas eu sou a mulher dele! Não devia ser eu a saber primeiro? — perguntei, desesperada por uma resposta que fizesse sentido.
Ela abraçou-me e ficámos assim muito tempo.
Voltei para casa dois dias depois. O Miguel estava sentado no sofá com os olhos fixos na televisão desligada. Quando me viu entrar, levantou-se de imediato.
— Inês… Não aguento mais isto. Diz-me o que queres fazer.
Sentei-me à frente dele e respirei fundo.
— Quero saber toda a verdade. Sem rodeios. Quanto dinheiro lhe deste? Há quanto tempo isto dura?
Ele hesitou antes de responder:
— Começou há seis meses… Ela pediu ajuda para pagar uma dívida antiga do banco. Eu transferi-lhe 300 euros por mês… Não queria preocupar-te…
Senti um nó no estômago ao ouvir o valor total. Era dinheiro suficiente para as férias que tínhamos planeado com as crianças há anos e nunca conseguimos fazer.
— E se ela te pedir mais? Vais continuar a esconder-me?
Ele abanou a cabeça:
— Não… Prometo-te que acabou aqui. Não vou fazer mais nada sem te contar primeiro.
Olhei para ele longamente. Queria acreditar nele, mas algo dentro de mim tinha mudado.
As semanas passaram e tentei perdoar. Mas cada vez que via um extracto bancário ou ouvia o nome da Carla, sentia uma pontada de ciúme e desconfiança. O Miguel esforçava-se: ajudava mais em casa, era carinhoso com as crianças e comigo. Mas havia sempre um muro invisível entre nós.
Um dia, ao buscar a Leonor à escola primária, ela perguntou:
— Mãe, porque é que tu e o pai andam sempre tristes?
Fiquei sem palavras. Percebi então que os nossos filhos também estavam a sofrer com tudo isto.
Nessa noite, sentei-me com o Miguel depois de deitarmos as crianças.
— Não sei se consigo esquecer isto — confessei baixinho.
Ele olhou para mim com lágrimas nos olhos:
— Eu só queria fazer o bem… Nunca quis magoar-te.
Ficámos abraçados em silêncio durante muito tempo.
Hoje ainda não sei se alguma vez vou conseguir confiar plenamente nele outra vez. Mas sei que não quero desistir sem lutar pelo nosso casamento e pela nossa família.
Às vezes pergunto-me: será que o amor é suficiente para superar uma traição destas? Ou será que há feridas que nunca saram? O que fariam vocês no meu lugar?