O Segredo de Helena: Entre o Amor de Mãe e a Busca por Reconhecimento
— Mãe, porque é que nunca podemos fazer o que eu quero? — gritou o Tiago, atirando a mochila para o chão da sala. O som ecoou pela casa, misturando-se com o cheiro do arroz de pato que fervia na cozinha. A minha mão tremeu ao mexer o tacho. Olhei para ele, olhos marejados, e tentei responder com a calma que já me faltava há meses.
— Tiago, sabes que tudo o que faço é para o vosso bem. — A minha voz saiu mais fraca do que queria. O João, o mais novo, apareceu à porta, olhos arregalados, sentindo a tensão no ar. A Inês, a do meio, fingia não ouvir, mas eu sabia que cada palavra ficava gravada nela.
A verdade é que desde que o António nos deixou — ou melhor, desde que eu o mandei embora depois de anos de discussões e silêncios —, a casa nunca mais foi a mesma. Fiquei sozinha com três filhos e uma casa demasiado grande para os nossos sonhos partidos. Os meus pais diziam-me sempre: “Helena, tens de ser forte. Os teus filhos precisam de ti.” E eu tentei ser tudo: mãe, pai, amiga, confidente. Mas ninguém me preparou para o vazio das noites em claro, para as contas que se acumulavam na gaveta da cozinha ou para o olhar de julgamento das vizinhas quando me viam chegar sozinha ao supermercado.
No início, dediquei-me por inteiro aos meus filhos. Inscrevi-os em todas as atividades possíveis: futebol para o Tiago, ballet para a Inês, natação para o João. Queria que tivessem tudo aquilo que eu nunca tive. Trabalhava como administrativa numa escola primária e fazia limpezas ao fim de semana. O dinheiro mal chegava para as despesas básicas, mas eu dava sempre um jeito para comprar as sapatilhas novas do Tiago ou o fato de bailarina da Inês.
Mas havia algo mais profundo por trás deste sacrifício todo. Lembro-me do dia em que a professora da Inês me chamou à escola:
— Dona Helena, a Inês é muito talentosa no ballet. Já pensou em inscrevê-la numa escola profissional?
O meu coração encheu-se de orgulho. Pela primeira vez em anos senti-me vista, reconhecida não só como mãe mas como alguém capaz de criar algo bonito neste mundo. Saí da escola com a cabeça erguida e contei a novidade à minha mãe ao telefone.
— Vês? Sempre disse que eras uma boa mãe! — disse ela.
Essas palavras alimentaram-me durante semanas. Comecei a partilhar os feitos dos meus filhos nas redes sociais: fotos dos troféus do Tiago, vídeos das atuações da Inês, medalhas do João. Os comentários e os gostos eram como pequenas doses de felicidade instantânea. Sentia-me importante outra vez.
Mas nem tudo era tão perfeito como parecia nas fotografias. O Tiago começou a faltar aos treinos sem me dizer nada. Descobri quando o treinador me ligou:
— Helena, o Tiago não aparece há duas semanas. Está tudo bem?
Confrontei-o naquela noite:
— Porque é que não vais aos treinos?
Ele olhou-me nos olhos e disse:
— Eu odeio futebol! Só vou porque tu queres mostrar aos outros que tens um filho campeão.
As palavras dele cortaram-me como uma faca. Fiquei sem saber o que responder. Senti vergonha — não dele, mas de mim própria. Será que estava mesmo a fazer isto por eles? Ou era só para provar ao mundo (e talvez a mim mesma) que era capaz?
A situação piorou quando perdi o emprego na escola. A crise apertava e cortaram nos contratos temporários. As limpezas não chegavam para tudo e comecei a pedir dinheiro emprestado à minha irmã, a Marta.
— Helena, tu tens de parar com essas atividades todas. Não tens dinheiro nem tempo! — dizia ela sempre que me via chegar cansada aos domingos à noite.
Mas eu não conseguia parar. Sentia que se desistisse agora, tudo desmoronava. Os meus filhos iam ver-me como uma fracassada e eu ia perder aquele pouco reconhecimento que ainda recebia dos outros.
A Inês começou a ter ataques de ansiedade antes das atuações. Uma noite acordei com ela a chorar baixinho no quarto:
— Mãe, eu não quero ir ao campeonato nacional… Tenho medo de falhar.
Sentei-me na cama dela e abracei-a com força.
— Filha, tu és maravilhosa mesmo quando falhas.
Mas por dentro sentia-me culpada. Será que estava a empurrá-la para algo que ela não queria só para alimentar o meu orgulho?
O João era o mais calado dos três. Um dia encontrei um desenho dele: uma família partida ao meio, com uma mãe gigante no centro e três crianças pequenas nos cantos. No canto inferior estava escrito: “Quero brincar com a mãe.”
Foi aí que percebi o quanto me tinha afastado deles na tentativa de ser tudo para todos menos aquilo que eles realmente precisavam: uma mãe presente, sem máscaras nem agendas escondidas.
Numa noite chuvosa de novembro, sentei-me com eles à mesa da cozinha. O silêncio era pesado.
— Meus amores… — comecei, com lágrimas nos olhos — Eu errei convosco. Quis tanto provar ao mundo que era uma boa mãe que me esqueci de vos ouvir.
O Tiago levantou-se e abraçou-me sem dizer nada. A Inês chorou baixinho e o João encostou-se ao meu ombro.
Nesse momento percebi que talvez ainda fosse tempo de mudar. Decidi reduzir as atividades deles ao mínimo e passar mais tempo juntos: passeios no parque, tardes de filmes em casa, conversas sem pressa.
A relação com a Marta melhorou também. Pedi-lhe desculpa por não ter ouvido os seus conselhos antes.
Hoje olho para trás e vejo uma mulher cansada mas mais verdadeira. Sei que ainda carrego cicatrizes das escolhas erradas e das noites em claro. Mas aprendi que ser mãe não é sobre troféus ou likes nas redes sociais — é sobre estar presente nos momentos bons e maus.
Às vezes pergunto-me: quantas mães vivem presas à necessidade de reconhecimento dos outros? Quantas sacrificam os filhos sem perceberem? E vocês… já se questionaram sobre as vossas verdadeiras motivações?