O Segredo de António: Entre o Amor e a Mentira
— Dona Marta? — a voz do outro lado era fria, quase mecânica. — O seu marido, António, teve um acidente. Mas… não é só isso.
O telefone quase escorregou-me das mãos. O sangue gelou-me nas veias. Senti o chão fugir dos pés. — Como assim, não é só isso? — perguntei, a voz trémula, já a antecipar o pior.
— Precisa de vir ao hospital de Santa Maria imediatamente. Ele está consciente, mas… estava acompanhado no carro.
Não ouvi mais nada. Larguei tudo — a loiça por lavar, o jantar por acabar, a minha filha Inês a perguntar porque é que eu chorava. Saí de casa a correr, tropeçando nos degraus da entrada do nosso prédio em Benfica. O ar da noite parecia mais pesado, como se Lisboa inteira estivesse suspensa naquele momento.
No táxi, as perguntas atropelavam-se na minha cabeça. Quem estava com ele? O que é que aconteceu? Porque é que ninguém me diz nada? O motorista olhou-me pelo retrovisor, talvez assustado com o meu soluçar descontrolado.
Cheguei ao hospital e fui recebida por uma enfermeira de rosto cansado. — Dona Marta? Venha comigo, por favor.
O corredor cheirava a desinfetante e medo. Passámos por uma sala de espera cheia de gente — mães com crianças febris, idosos cabisbaixos, um rapaz com sangue na camisa. A enfermeira parou junto a uma porta e olhou-me nos olhos.
— O seu marido está ali dentro. Está estável. Mas…
— Mas?! — gritei quase sem perceber.
— A outra pessoa… era uma mulher. Está em estado grave.
Senti um murro no estômago. Uma mulher? Tentei respirar fundo, mas o ar parecia não chegar aos pulmões. Entrei no quarto e vi António deitado na cama, o rosto pálido, um corte profundo na testa. Quando me viu, os olhos encheram-se de lágrimas.
— Marta…
— Quem era ela, António? — perguntei antes de qualquer outra coisa. Não conseguia controlar a raiva nem o medo.
Ele desviou o olhar para a janela escura. — Marta… eu não queria que soubesses assim.
— Então querias que eu nunca soubesse? Que continuasse a viver na mentira?
Ele chorou. Eu também chorei. O silêncio entre nós era mais pesado do que qualquer palavra dita naquela noite.
A enfermeira voltou para me avisar que a outra mulher estava nos cuidados intensivos. O nome dela era Sofia. Sofia Costa. O nome soava-me vagamente familiar, mas não conseguia situá-lo.
Voltei para casa em piloto automático. Inês já dormia no sofá, agarrada ao boneco preferido. Sentei-me ao lado dela e chorei baixinho até o sol nascer.
No dia seguinte, fui ao hospital novamente. António estava melhor fisicamente, mas entre nós havia um abismo impossível de atravessar. Ele tentou explicar-se:
— Marta, conheci a Sofia há uns meses no trabalho. Começámos a conversar… ela estava a passar por um divórcio difícil…
— E tu foste ajudá-la? — interrompi, sarcástica.
— Não foi só isso… Eu sentia-me sozinho, Marta. Tu estavas sempre cansada, preocupada com a Inês, com o trabalho… Eu sei que não é desculpa! Mas aconteceu.
As palavras dele eram facas afiadas no meu peito. Lembrei-me dos últimos meses: as noites em que ele chegava tarde, as mensagens que nunca mostrava, as discussões sem motivo aparente.
Durante dias vivi num limbo entre o hospital e casa. Inês começou a perceber que algo estava errado.
— Mãe, porque é que o pai não vem para casa?
— Ele está doente, filha…
Mas ela não era parva. Um dia ouvi-a ao telefone com a avó:
— A mãe anda sempre triste e chora à noite… Acho que o pai fez alguma coisa má.
A minha mãe apareceu em casa nessa noite. Sentou-se comigo à mesa da cozinha e segurou-me as mãos:
— Marta, tens de ser forte pela tua filha. Mas também tens de pensar em ti.
Eu sabia disso. Mas como se faz isso quando tudo à nossa volta desaba?
Sofia sobreviveu ao acidente mas ficou com sequelas graves. Um dia pediu para falar comigo. Fui vê-la ao hospital, sem saber bem porquê.
— Marta… desculpa — disse ela com voz fraca. — Eu nunca quis destruir a tua família.
Olhei para ela e vi uma mulher despedaçada, tão perdida quanto eu.
— Não foste só tu — respondi. — O António também teve escolha.
Saí dali mais leve, mas também mais vazia.
O tempo passou devagar. António voltou para casa depois de semanas no hospital. Tentámos conversar, tentámos terapia de casal, tentámos fingir normalidade por causa da Inês. Mas nada voltava ao sítio certo.
Uma noite, depois de adormecer Inês, sentei-me na varanda com António.
— Achas que ainda conseguimos ser felizes juntos? — perguntei-lhe.
Ele ficou em silêncio muito tempo antes de responder:
— Não sei, Marta… Mas quero tentar.
Eu queria acreditar nele. Queria acreditar em nós. Mas havia uma parte de mim que já não conseguia confiar.
Os meses seguintes foram feitos de altos e baixos: pequenas alegrias roubadas à rotina, discussões acesas por coisas mínimas, silêncios desconfortáveis à mesa do jantar. A família dele afastou-se; a minha mãe tornou-se o meu pilar.
Um dia recebi uma carta da Sofia. Dizia que ia mudar-se para o Porto para recomeçar do zero e pedia-me desculpa mais uma vez. Senti pena dela — e também de mim própria.
No Natal desse ano, sentámo-nos à mesa como uma família normal: eu, António e Inês. Mas sabíamos todos que nada era igual.
Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas famílias vivem assim, presas entre o passado e o medo do futuro? Quantas Martas há em Portugal a fingir que está tudo bem só para proteger os filhos?
Será possível perdoar verdadeiramente uma traição? Ou será que algumas feridas nunca cicatrizam completamente?