O Segredo da Minha Mãe: Trinta e Cinco Anos de Silêncio em Lisboa
— Mãe, porque é que nunca me contaste a verdade? — A voz da Lucinda ecoou pelo corredor estreito do nosso apartamento em Alfama, carregada de mágoa e incredulidade. O cheiro a café acabado de fazer misturava-se com o aroma a roupa lavada, mas naquele instante tudo pareceu azedar.
Senti o coração a bater tão forte que temi que ela o ouvisse. Olhei para as minhas mãos, calejadas de anos a limpar casas alheias, e desejei que pudessem contar a história por mim. Mas as palavras, essas, sempre me faltaram quando mais precisei delas.
— Lucinda, filha… — tentei começar, mas a voz saiu-me rouca, quase um sussurro. — Eu só queria proteger-te.
Ela virou-se de costas para mim, os ombros tensos, o cabelo escuro preso num rabo-de-cavalo apressado. Lembrei-me de quando era pequena, de como me agarrava à minha perna quando tinha medo dos trovões. Agora, era eu quem tremia.
Tudo começou há trinta e cinco anos, numa noite húmida de março. O meu nome era Mariana, mas naquele tempo, para o mundo, eu era Manuel. Cresci numa aldeia do interior, onde as pessoas sabiam mais da vida dos outros do que da sua própria. Quando engravidei, sozinha e sem explicação para dar, a vergonha caiu sobre mim como uma tempestade. O meu pai, homem de poucas palavras e muitos silêncios, olhou-me nos olhos e disse:
— Aqui, não há lugar para escândalos. Ou vais embora, ou…
Não precisou de acabar a frase. Na manhã seguinte, com uma mala de cartão e o coração despedaçado, apanhei o comboio para Lisboa. Tinha vinte anos e uma filha a crescer dentro de mim. Não sabia nada da cidade, só que era grande o suficiente para me perder nela.
Foi a Dona Amélia, uma senhora de voz grossa e coração generoso, que me acolheu numa pensão perto do Martim Moniz. Quando percebeu que eu precisava de trabalho, arranjou-me uma vaga a limpar escritórios. Mas Lisboa, mesmo sendo cidade de mil rostos, não era lugar fácil para uma mulher sozinha e grávida. As perguntas eram muitas, os olhares ainda mais.
Foi então que decidi ser Manuel. Cortei o cabelo, vesti roupas largas, e comecei a trabalhar como homem. Ninguém desconfiou. O salário era melhor, o respeito também. Quando a Lucinda nasceu, registei-a como filha de Manuel. Mariana passou a existir apenas nos meus sonhos e nas cartas que nunca enviei.
Durante anos, vivi com medo. Medo de ser descoberta, medo de perder a minha filha, medo de não conseguir pagar a renda ao senhor Joaquim, que batia à porta todos os meses com a mesma cara fechada. A Lucinda cresceu a pensar que tinha um pai solteiro. Eu era tudo para ela: mãe, pai, amiga, confidente. Mas nunca pude ser eu mesma.
— Porque é que nunca me deixaste conhecer a minha mãe? — perguntou-me ela uma vez, aos dez anos, depois de uma colega lhe ter dito que só as mães sabiam fazer arroz doce como deve ser.
— A tua mãe era uma mulher muito especial — respondi, engolindo em seco. — Mas teve de partir.
A mentira pesava-me nos ombros, mas o medo era maior. Sabia que, se alguém descobrisse, podia perder tudo. Portugal dos anos 90 não era lugar para segredos destes. Os vizinhos falavam baixo, mas ouviam alto. E eu não podia arriscar.
Os anos passaram. A Lucinda tornou-se uma jovem brilhante, cheia de sonhos e perguntas. Entrou na faculdade, fez amigos, apaixonou-se. Eu continuei a limpar escritórios, a viver na sombra do meu próprio segredo.
Mas os segredos têm pernas curtas. Um dia, a Lucinda encontrou uma caixa escondida no fundo do armário. Lá dentro, cartas antigas, fotografias de uma mulher que ela não reconhecia — eu, antes de ser Manuel. Quando chegou a casa, os olhos dela estavam vermelhos de tanto chorar.
— Quem é esta mulher? — perguntou, segurando uma fotografia minha, com o cabelo comprido e um sorriso tímido.
Sentei-me à mesa da cozinha, as mãos a tremer. Sabia que aquele momento ia chegar, mas nunca estive preparada.
— Sou eu, filha. — As palavras saíram-me baixinho, quase como uma confissão.
O silêncio que se seguiu foi ensurdecedor. Ela olhou para mim como se me visse pela primeira vez.
— Então… tu és a minha mãe? Sempre foste?
Assenti, incapaz de falar mais. As lágrimas correram-me pelo rosto, quentes e salgadas. Ela afastou-se, como se precisasse de ar.
— Porque é que me mentiste? — gritou. — Porque é que me roubaste a verdade?
Quis explicar-lhe tudo: o medo, a solidão, o sacrifício. Mas como se explica a alguém que o amor, às vezes, se esconde atrás de mentiras para proteger?
Os dias seguintes foram um tormento. A Lucinda mal me falava, saía cedo e chegava tarde. O apartamento parecia maior, mais frio. Senti-me novamente sozinha, como naquela noite em que cheguei a Lisboa.
A Dona Amélia, já velhinha, foi a única a quem contei tudo. Sentámo-nos no banco do jardim, ela apertou-me a mão e disse:
— Fizeste o que tinhas de fazer para sobreviver. Mas agora é tempo de seres tu mesma.
Ganhei coragem e escrevi uma carta à Lucinda. Contei-lhe tudo: o medo de perder o emprego, o medo dos vizinhos, o medo de não conseguir criá-la sozinha. Disse-lhe que cada mentira foi um acto de amor, mesmo que imperfeito.
Ela leu a carta em silêncio. Depois, sentou-se ao meu lado na varanda e, pela primeira vez em semanas, olhou-me nos olhos.
— Não sei se consigo perdoar-te já — disse ela, a voz embargada. — Mas quero tentar perceber.
Abraçámo-nos, e naquele abraço senti o peso de trinta e cinco anos a aliviar-se, mesmo que só um pouco.
Hoje, já com os cabelos brancos e as mãos ainda mais gastas, olho para a Lucinda — agora mulher feita, mãe também — e pergunto-me se teria feito tudo igual. O segredo que carreguei moldou-nos às duas, para o bem e para o mal.
Será que o amor justifica todas as mentiras? Ou será que, ao proteger quem amamos, acabamos por os afastar ainda mais? O que fariam vocês no meu lugar?