O Segredo da Minha Mãe: A Casa Que Nunca Foi Nossa
— Se não gostas das minhas regras, a porta está ali! — gritou Dona Emília, apontando com o dedo enrugado para a entrada da casa. O eco da sua voz ressoou pelas paredes frias da sala, misturando-se com o cheiro a café queimado e a humidade entranhada nos móveis antigos. Senti o coração apertar-se no peito, como se cada batida fosse um pedido de socorro que ninguém ouvia.
O Rui, sentado ao meu lado no sofá, olhava para o chão. Os olhos castanhos, que tantas vezes me tinham dado conforto, agora fugiam dos meus. Eu queria gritar, queria pedir-lhe que me defendesse, mas as palavras ficaram presas na garganta. A casa onde vivíamos há seis anos, onde crescemos juntos e onde sonhámos criar uma família, parecia de repente um campo de batalha.
— Mãe, por favor… — murmurou ele, mas Dona Emília já tinha virado costas, resmungando qualquer coisa sobre nora ingrata e filhos que não sabem dar valor ao que têm.
Fiquei ali sentada, imóvel. O silêncio entre mim e o Rui era mais pesado do que qualquer discussão. Sabia que ele estava dividido — entre mim e aquela mulher que sempre controlou tudo na vida dele. Mas eu também estava cansada de engolir em seco, de fingir que não me magoava cada vez que ela me tratava como uma intrusa.
Naquela noite, depois do jantar — um arroz de frango que comi sem sentir o sabor — fui arrumar a cozinha. O Rui ficou na sala com a mãe, como sempre fazia. Ouvi-os a falar baixo, mas não consegui perceber o que diziam. Senti-me sozinha, como tantas vezes antes.
Quando finalmente subi para o nosso quarto, encontrei o Rui sentado na cama, de cabeça baixa.
— Ela não vai mudar, pois não? — perguntei-lhe em voz baixa.
Ele abanou a cabeça.
— É a minha mãe… sabes como ela é. E esta casa… sempre foi dela.
Aquelas palavras ficaram-me a martelar na cabeça: “sempre foi dela”. Mas eu lembrava-me bem do dia em que nos mudámos para ali. O Rui tinha-me dito que era uma herança do pai dele, que agora era nossa. Tínhamos feito planos para remodelar o jardim, para pintar as paredes do quarto do futuro bebé…
Na manhã seguinte, enquanto Dona Emília saía para ir à missa das oito, decidi procurar os papéis da casa. Não sei bem o que me levou a fazê-lo — talvez uma necessidade de me agarrar a alguma certeza no meio daquele caos. Vasculhei as gavetas do escritório do Rui até encontrar uma pasta azul-escura com documentos antigos.
Foi aí que vi o nome da minha mãe.
O choque foi tão grande que tive de me sentar. O contrato de compra e venda da casa estava em nome da minha mãe — Maria do Céu Rodrigues. Não percebia nada. Porque é que a casa onde vivia com o meu marido e a minha sogra estava em nome da minha mãe? Porque é que ninguém me tinha dito nada?
Esperei até ao fim do dia para ligar à minha mãe. A voz dela soou cansada do outro lado da linha.
— Filha… está tudo bem?
— Mãe… preciso de te perguntar uma coisa. A casa onde eu e o Rui vivemos… está em teu nome?
Houve um silêncio longo.
— Filha… eu… — ouvi-a suspirar. — Eu fiz isso para te proteger.
— Proteger-me de quê? — perguntei, sentindo as lágrimas a subir-me aos olhos.
— O pai do Rui tinha dívidas… muitas dívidas. Quando ele morreu, a Dona Emília pediu-me ajuda. Eu comprei a casa para evitar que fosse penhorada. Mas ela nunca quis admitir isso… sempre disse ao Rui que era herança dele.
Senti-me traída por todos. Pela minha mãe, por não me ter contado; pelo Rui, por nunca ter questionado; pela Dona Emília, por me tratar como uma intrusa numa casa que afinal era da minha família.
Nessa noite, esperei que todos estivessem a dormir para sair de casa. Caminhei pelas ruas vazias da aldeia até ao largo da igreja. Sentei-me num banco de pedra e chorei até não ter mais lágrimas.
No dia seguinte, enfrentei Dona Emília na cozinha.
— Sabe… descobri ontem quem é realmente dona desta casa — disse-lhe, tentando manter a voz firme.
Ela olhou para mim com desprezo.
— E então? Vais fazer o quê? Expulsar-me?
— Não quero expulsar ninguém — respondi. — Só quero respeito. E quero saber porque é que sempre me tratou como se eu fosse uma estranha aqui.
Ela ficou calada durante uns segundos intermináveis.
— Porque tu nunca foste suficiente para o meu filho — disse finalmente. — E porque esta casa devia ser nossa… não tua nem da tua mãe!
O Rui entrou na cozinha nesse momento e ouviu tudo. Olhou para mim, depois para a mãe.
— Mãe… porque é que nunca me disseste nada?
Ela encolheu os ombros.
— Porque não queria perder-te para ela.
O Rui ficou sem palavras. Eu também. Era como se todas as máscaras tivessem caído naquele instante.
Durante semanas, o ambiente em casa tornou-se insuportável. Dona Emília mal me falava; o Rui andava perdido entre nós duas; eu sentia-me cada vez mais sufocada. Comecei a pensar em sair dali — arranjar um apartamento pequeno só para mim e para o Rui. Mas ele hesitava sempre que lhe falava nisso.
Uma noite, depois de mais uma discussão silenciosa à mesa do jantar, o Rui veio ter comigo ao quarto.
— Não sei viver sem ti… mas também não sei deixar a minha mãe sozinha — confessou-me, com lágrimas nos olhos.
Abracei-o com força. Queria acreditar que o nosso amor era suficiente para superar tudo aquilo. Mas será que era mesmo?
No dia seguinte, recebi uma carta da minha mãe. Dizia apenas: “Filha, faz aquilo que te faz feliz. Não deixes ninguém decidir por ti.” Fiquei horas a olhar para aquelas palavras simples mas tão pesadas.
Decidi então confrontar o Rui uma última vez.
— Ou escolhemos juntos um caminho novo… ou vou embora — disse-lhe, olhando-o nos olhos.
Ele ficou em silêncio durante muito tempo. Depois pegou na minha mão.
— Vamos procurar uma casa só nossa — disse finalmente.
Foi assim que saímos daquela casa cheia de fantasmas e começámos de novo num pequeno apartamento nos arredores do Porto. Dona Emília ficou sozinha na velha casa — recusou-se sempre a sair ou aceitar ajuda. O Rui visitava-a todas as semanas; eu ia de vez em quando, mas nunca mais consegui sentir-me em casa ali.
Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas famílias vivem presas a segredos antigos? Quantas mulheres são obrigadas a escolher entre o amor próprio e o amor pelos outros? Será possível reconstruir-nos depois de tanta mentira?