O Regresso de Mariana: Entre o Perdão e a Saudade
— Mariana, vais mesmo fazer isto? — perguntei-me em voz baixa, enquanto olhava pela janela do comboio que serpenteava pelo Douro. O meu reflexo devolvia-me um olhar cansado, mas determinado. O telemóvel vibrava na mala, mensagens da minha amiga Inês a perguntar se já tinha coragem para enfrentar os meus pais depois de dez anos de silêncio. Respirei fundo. Não era coragem, era necessidade. Desde que a pequena Leonor nasceu, o vazio dentro de mim tornou-se insuportável. Como podia ensinar-lhe sobre família se eu própria fugia da minha?
O comboio abrandou à entrada da estação de Peso da Régua. O cheiro a terra molhada misturava-se com o nervosismo que me subia à garganta. Lembrei-me da última vez que estive ali: tinha vinte e três anos, uma mala cheia de sonhos e uma discussão acesa com o meu pai, o António. “Se saíres por essa porta, não voltes!” — gritou ele, com a voz embargada. A minha mãe, D. Teresa, ficou calada, olhos vermelhos, mãos trémulas. Saí mesmo assim, convencida de que a vida em Lisboa me traria liberdade e felicidade.
Durante anos, escondi dos amigos a verdade sobre a minha família. Dizia que éramos próximos, que falávamos todas as semanas. Era mais fácil mentir do que explicar o silêncio pesado que se instalou entre nós. Mas quando Leonor nasceu, percebi que não podia continuar a fugir. O parto difícil, as noites sem dormir, o medo constante de falhar como mãe… tudo me fez desejar o colo da minha mãe, o conselho do meu pai.
Desci do comboio com as pernas a tremer. O sol já se punha atrás das vinhas e o ar estava frio. Peguei no telemóvel e marquei o número da minha mãe. Chamou três vezes antes de atender.
— Sim? — A voz dela soou distante, quase irreconhecível.
— Mãe… sou eu, a Mariana.
Do outro lado ouvi apenas silêncio. O tempo parecia ter parado.
— Mariana… — sussurrou ela, como se dissesse o nome de alguém que julgava perdido para sempre.
— Estou na Régua. Posso ir a casa?
Ouvi um soluço abafado antes da resposta:
— Vem… estamos à tua espera há muito tempo.
O caminho até casa dos meus pais foi feito num misto de ansiedade e esperança. Cada rua trazia memórias: o café onde estudava para os exames, a mercearia do Sr. Joaquim onde comprava rebuçados em criança… Tudo parecia igual e ao mesmo tempo tão diferente.
Quando cheguei ao portão, hesitei. A casa estava igual, mas as flores do jardim estavam menos cuidadas. Toquei à campainha e ouvi passos apressados do outro lado. A porta abriu-se e vi a minha mãe — mais magra, cabelos grisalhos, mas com o mesmo olhar doce de sempre.
— Mariana! — exclamou ela, abraçando-me com força. Senti as lágrimas escorrerem pelo rosto enquanto me agarrava a ela como se fosse uma tábua de salvação.
O meu pai apareceu no corredor, mais velho do que me lembrava, com uma bengala na mão.
— Então… voltaste — disse ele, tentando esconder a emoção atrás de um tom seco.
— Voltei, pai… — respondi, sem saber se devia aproximar-me ou manter a distância.
Ele hesitou por um segundo antes de me puxar para um abraço desajeitado.
— Já era tempo — murmurou ao meu ouvido.
Sentámo-nos na sala, rodeados por fotografias antigas e silêncios desconfortáveis. A minha mãe preparou chá e bolachas como fazia quando eu era pequena. Olhei para eles e percebi quanto tempo tinha perdido.
— Porque nunca ligaste? — perguntou o meu pai, com a voz embargada.
— Tinha medo… medo de não ser perdoada — confessei.
A minha mãe apertou-me a mão.
— O amor de uma mãe nunca desaparece, Mariana. Só dói… dói muito.
Ficámos ali sentados durante horas, partilhando mágoas e saudades. Contei-lhes sobre Leonor, mostrei fotografias no telemóvel. Vi nos olhos deles uma mistura de orgulho e tristeza pelo tempo perdido.
Na manhã seguinte, acordei cedo com o som das andorinhas no telhado. Fui até ao quarto dos meus pais e encontrei-os sentados lado a lado na cama.
— Não dormimos quase nada esta noite — disse a minha mãe. — Tínhamos medo que fosse apenas um sonho.
Sentei-me com eles e falámos sobre tudo: os meus anos em Lisboa, os empregos que perdi, os amores falhados, a solidão dos dias longos… Eles contaram-me sobre a doença do meu pai — um AVC há dois anos que lhe tirou parte da mobilidade — e sobre como aprenderam a viver um sem o outro durante tanto tempo.
Ao almoço, decidi contar-lhes toda a verdade:
— Mãe… pai… Eu não vim só para vos ver. Quero pedir-vos perdão por tudo o que fiz e disse naquele dia. Quero que conheçam a Leonor. Quero que façam parte da nossa vida.
O meu pai olhou-me nos olhos:
— O passado não se apaga, Mariana. Mas podemos construir um novo futuro.
A minha mãe chorava em silêncio, agarrada à minha mão como se tivesse medo de me perder outra vez.
Os dias seguintes foram feitos de pequenos gestos: cozinhar juntos, passear pelas vinhas, rir das histórias antigas… Mas nem tudo foi fácil. O ressentimento ainda pairava no ar. Uma noite ouvi os meus pais discutirem baixinho na cozinha:
— Achas mesmo que ela mudou? — perguntava o meu pai.
— Ela precisa de nós tanto como nós precisamos dela — respondia a minha mãe.
Senti-me culpada por ter causado tanta dor. Quis fugir outra vez, mas lembrei-me da Leonor e do motivo pelo qual ali estava.
No último dia antes de regressar a Lisboa para buscar a minha filha, sentei-me com os meus pais à mesa da cozinha.
— Quero trazer a Leonor cá no próximo fim-de-semana — anunciei. — Quero que ela conheça os avós.
O rosto da minha mãe iluminou-se com um sorriso tímido. O meu pai assentiu em silêncio.
Quando voltei com Leonor nos braços, vi nos olhos dos meus pais uma alegria que há muito não via. A minha filha correu para eles sem medo e abraçou-os como se sempre os tivesse conhecido.
Nesse momento percebi que o perdão é um caminho longo e difícil, mas possível quando há amor verdadeiro.
Agora escrevo esta história sentada no jardim da casa onde cresci, vendo Leonor brincar entre as flores que plantei em criança. Penso em tudo o que perdi e em tudo o que ainda posso recuperar.
Será que algum dia conseguiremos realmente perdoar quem amamos? Ou será que vivemos sempre entre o passado e o futuro, tentando encontrar paz no presente? Gostava de saber como vocês lidam com as vossas próprias feridas familiares…