O Que Vejo no Espelho: O Peso de um Casamento

— Maria, não achas que já era altura de fazeres alguma coisa quanto ao teu peso? — A voz do Rui ecoou na cozinha, fria, enquanto eu tentava terminar o jantar com a Carolina pendurada na minha perna e o Tomás a pedir atenção do outro lado da mesa. Senti o sangue gelar-me nas veias. Oiço o barulho do arroz a ferver, o cheiro do refogado a queimar-se, mas tudo se apaga perante aquela frase.

Fiquei ali, de costas para ele, a mexer a colher de pau sem saber o que responder. Por dentro, uma tempestade: vergonha, raiva, tristeza. Lembrei-me de quando nos conhecemos, há dez anos, na festa de aniversário da minha prima em Braga. Eu era magra, sorridente, cheia de sonhos. Ele dizia que adorava o meu riso, que eu era a mulher mais bonita da sala. Agora, sou só “a mãe dos miúdos”, cansada, com olheiras e uns quilos a mais.

— Rui, não tens noção do que acabaste de dizer? — respondi, tentando controlar a voz trémula. Ele encolheu os ombros, como se fosse um comentário qualquer.

— Só estou a ser sincero. Não quero que te deixes ir abaixo. — Disse isto sem sequer levantar os olhos do telemóvel.

Naquela noite, depois de deitar as crianças, olhei-me ao espelho da casa de banho. Vi as estrias na barriga, os seios descaídos da amamentação, as rugas finas nos cantos dos olhos. Senti-me invisível. Lembrei-me da minha mãe a dizer-me quando era miúda: “Maria, nunca deixes que um homem te faça sentir menos do que és.” Mas ali estava eu, a sentir-me menos.

Os dias seguintes foram um arrastar de silêncios e pequenas discussões. Rui chegava tarde do trabalho, dizia que estava cansado. Eu também estava, mas ninguém parecia reparar. A minha sogra ligava todos os dias a perguntar se precisava de ajuda com as crianças, mas o tom era sempre crítico: “Sabes, Maria, no tempo da minha mãe, as mulheres tinham cinco filhos e estavam sempre impecáveis.” Eu sorria e agradecia, mas por dentro sentia-me cada vez mais sozinha.

Uma noite, depois de mais uma discussão sobre quem devia dar banho ao Tomás, explodi:

— Rui, achas mesmo que o meu corpo é o problema? Ou será que és tu que já não me vês?

Ele ficou calado. Pela primeira vez em semanas, olhou-me nos olhos.

— Não sei, Maria. Sinto que já não somos os mesmos. — A voz dele saiu baixa, quase um sussurro.

Chorei em silêncio nessa noite. Senti-me culpada por tudo: por não ser a mulher perfeita, por não ter energia para brincar com os miúdos depois do trabalho, por não conseguir manter o casamento como antes. Comecei a evitar o espelho. Passei a vestir roupas largas, a sair menos de casa.

A Carolina começou a perguntar porque é que eu já não sorria tanto. O Tomás fez um desenho na escola: uma família com quatro pessoas, mas a mãe era só um borrão cinzento.

Procurei refúgio na casa da minha irmã, Inês. Ela percebeu logo que algo não estava bem.

— Maria, tu não és só mãe ou mulher do Rui. És TU! Lembras-te de quando pintavas quadros? De quando dançavas no meio da sala só porque sim?

Chorei no ombro dela como há anos não fazia. Senti um alívio estranho ao admitir: “Já não sei quem sou sem eles.”

Inês convenceu-me a procurar ajuda. Fui à psicóloga do centro de saúde. Falei sobre tudo: o cansaço, o medo de perder o Rui, a culpa por não ser suficiente para os meus filhos.

— Maria — disse a Dra. Teresa —, cuidar de si não é egoísmo. É necessidade. Se não cuidar de si, como vai cuidar dos outros?

Comecei devagarinho: voltei a pintar à noite quando as crianças dormiam; fui caminhar ao parque com a Inês; aceitei ir ao cinema sozinha pela primeira vez em anos. Aos poucos, fui recuperando pedaços de mim.

Rui notou as mudanças. Uma noite perguntou:

— Tens andado diferente… Estás mais distante?

— Não estou distante — respondi — estou a tentar encontrar-me outra vez.

Ele ficou calado. Percebi que também ele estava perdido no meio da rotina e das expectativas. Tentámos conversar mais vezes sem gritos nem acusações. Fomos juntos à terapia de casal. Descobrimos mágoas antigas nunca ditas: ele sentia-se pressionado para ser o provedor perfeito; eu sentia-me invisível e sobrecarregada.

Nem tudo se resolveu num passe de mágica. Ainda discutimos sobre quem faz o jantar ou quem vai buscar os miúdos à escola. Mas agora há mais respeito pelo espaço e pelas dores um do outro.

A minha sogra continua com os seus comentários passivo-agressivos, mas já não me afetam tanto. A Carolina voltou a desenhar-me com cor no papel.

Olho-me ao espelho e vejo as marcas da maternidade e do tempo — mas também vejo força e coragem onde antes só via falhas.

Pergunto-me muitas vezes: quantas mulheres se perdem assim no silêncio das suas casas? Quantas sentem vergonha do próprio corpo por palavras ditas sem pensar? Será que algum dia vamos aprender a amar-nos como somos — e exigir que nos amem assim também?