O Presente de António: Entre o Amor e a Desilusão

— Maria, tu já não és a mesma — ouvi a voz de António, o meu marido, ecoar pela cozinha enquanto eu lavava a loiça do jantar. As suas palavras caíram como pedras no silêncio da casa. Senti um nó apertar-me o peito, mas continuei a esfregar o prato, fingindo não ouvir.

— Não sei do que falas, António — respondi, tentando manter a voz firme. Mas ele insistiu, aproximando-se, os olhos cansados de quem já não sabe como chegar até mim.

— Desde que te reformaste, parece que perdeste o brilho. Sinto-te distante. — Ele pousou a mão no meu ombro, mas eu encolhi-me, como se o toque me queimasse.

A verdade é que ele tinha razão. Reformei-me aos sessenta e cinco anos, depois de quarenta anos como professora primária em Lisboa. No início, a liberdade era doce: manhãs preguiçosas, tardes com os netos, tempo para ler os romances que sempre deixei para depois. Mas a novidade depressa se esfumou. O silêncio da casa tornou-se ensurdecedor, e as visitas dos filhos eram cada vez mais raras. Sentia-me invisível.

Foi por isso que aceitei o trabalho na biblioteca do bairro. Não era pelo dinheiro — era pela rotina, pelo cheiro dos livros, pelas conversas com os leitores habituais. António não compreendia. Achava que eu devia aproveitar a reforma para viajar com ele, para redescobrirmos o nosso casamento. Mas eu sentia-me presa numa gaiola dourada.

Naquela noite, depois do jantar, António desapareceu para o escritório. Fiquei sozinha na sala, ouvindo o tique-taque do relógio e o som abafado da televisão dos vizinhos. Perguntei-me quando é que nos tínhamos perdido. Talvez tenha sido quando os filhos saíram de casa. Ou talvez nunca tenhamos estado realmente juntos — apenas ocupados demais para reparar nas fissuras.

No dia seguinte, António acordou cedo e saiu sem dizer para onde ia. Achei estranho, mas não perguntei. Passei a manhã na biblioteca, catalogando livros antigos e ouvindo Dona Emília reclamar das novas tecnologias.

Quando cheguei a casa ao fim da tarde, encontrei António à minha espera na sala. Tinha um sorriso nervoso e um embrulho nas mãos.

— Trouxe-te uma coisa — disse ele, estendendo-me o presente.

Olhei para o embrulho com desconfiança. Desatei o laço devagar, sentindo o olhar dele cravar-se em mim. Dentro da caixa estava uma máquina de escrever antiga, restaurada com todo o cuidado.

— Lembras-te de quando dizias que querias escrever um livro? — perguntou ele, ansioso. — Pensei que agora terias tempo…

Fiquei sem palavras. A máquina era linda, preta e brilhante, com as teclas gastas pelo tempo. Mas em vez de alegria, senti uma onda de tristeza.

— António… — comecei, mas ele interrompeu-me.

— Queria fazer-te feliz, Maria. Queria ver-te sorrir outra vez.

Sentei-me no sofá com a máquina no colo. Olhei para António e vi nos seus olhos uma esperança frágil, quase infantil. Mas dentro de mim só havia vazio.

— Não sei se consigo — murmurei.

Ele ajoelhou-se à minha frente.

— Por favor, tenta. Por nós.

Naquela noite não dormi. Fiquei horas a olhar para o teto, ouvindo a respiração pesada de António ao meu lado. Pensei em tudo o que tínhamos vivido: as viagens à Serra da Estrela quando éramos jovens, as noites sem dormir quando os meninos estavam doentes, as discussões por coisas pequenas e as reconciliações silenciosas.

No dia seguinte sentei-me à secretária com a máquina de escrever à minha frente. Toquei nas teclas com dedos trémulos. Escrevi uma frase: “Era uma vez uma mulher que se esqueceu de quem era.” As lágrimas caíram-me pelo rosto.

Durante semanas tentei escrever. Escrevia sobre a infância em Évora, sobre os meus pais severos e as tardes passadas no quintal da avó Rosa. Escrevia sobre António — sobre o rapaz tímido que me pediu em namoro no baile da escola e sobre o homem distante em que se tinha tornado.

Mas quanto mais escrevia, mais me apercebia de tudo o que tinha perdido: os sonhos adiados, as palavras nunca ditas, as mágoas guardadas no fundo do peito.

António começou a ficar impaciente.

— Ainda não acabaste nada? — perguntava ele todos os dias.

— Não é assim tão fácil — respondia eu, irritada.

As discussões tornaram-se frequentes. Ele queria sair mais vezes; eu queria ficar em casa a escrever ou a ler. Ele queria planear férias; eu queria silêncio.

Uma noite, depois de uma discussão particularmente amarga sobre um convite para jantar em casa da nossa filha Inês (que eu recusei), António explodiu:

— Tu já nem queres fazer parte da família! Só pensas em ti!

As palavras dele magoaram-me mais do que queria admitir. Senti-me egoísta e ingrata — mas também injustiçada. Ninguém parecia perceber o vazio que sentia desde que deixei de trabalhar.

Na semana seguinte, António começou a sair cada vez mais sozinho: ia jogar cartas ao café com os amigos ou passava horas no jardim público. Eu ficava em casa com a máquina de escrever e os meus fantasmas.

Um sábado à tarde, Inês apareceu sem avisar.

— Mãe, está tudo bem? O pai ligou-me ontem à noite… parecia triste.

Olhei para ela e vi preocupação nos seus olhos castanhos — tão parecidos com os meus.

— Estamos só… diferentes — disse-lhe.

Ela sentou-se ao meu lado e pegou na minha mão.

— Vocês sempre foram o exemplo do amor para mim e para o Pedro. Não deixes que isto vos afaste.

Chorei no ombro dela como uma criança perdida.

Naquela noite tentei falar com António.

— Talvez devêssemos procurar ajuda… alguém com quem falar — sugeri timidamente.

Ele olhou para mim como se eu fosse uma estranha.

— Não preciso de psicólogos para saber que já não me amas — disse ele antes de sair porta fora.

Fiquei sozinha na sala escura com a máquina de escrever à minha frente. Senti-me derrotada.

Os dias passaram lentos e cinzentos. António começou a dormir no quarto dos hóspedes. A casa parecia maior e mais fria sem ele ao meu lado.

Uma manhã encontrei um bilhete na mesa da cozinha:

“Maria,
Preciso de tempo para pensar. Vou passar uns dias em casa do Pedro.
António”

Sentei-me à mesa e chorei até não ter mais lágrimas.

Durante semanas vivi num limbo: ia trabalhar na biblioteca durante o dia e escrevia à noite, tentando encontrar sentido no caos da minha vida. Escrevi sobre tudo: sobre a solidão das mulheres reformadas, sobre os silêncios dos casamentos longos, sobre a dificuldade de recomeçar aos sessenta e cinco anos.

Quando António voltou finalmente para casa, trazia um ar cansado e resignado.

— Não sei se conseguimos voltar ao que éramos — disse ele calmamente. — Mas quero tentar ser teu amigo… se não pudermos ser mais do que isso.

Olhei para ele e percebi que talvez fosse tudo o que podíamos esperar agora: uma amizade tranquila depois da tempestade do amor desiludido.

Hoje continuo a trabalhar na biblioteca e escrevo sempre que posso. A máquina de escrever está na minha secretária como um lembrete do amor de António — e das nossas limitações humanas.

Às vezes pergunto-me: quantos casais vivem juntos apenas por hábito? Quantos sonhos deixamos morrer em nome da família? Será possível recomeçar depois dos sessenta?