O Preço do Tempo Não Correspondido: A História de Inês
— Inês, não podes continuar assim! — gritou a minha mãe da cozinha, enquanto eu olhava para o telemóvel à espera de uma mensagem que nunca chegava.
A voz dela ecoava pela casa, misturando-se com o cheiro do café acabado de fazer e o som abafado da chuva a bater nos vidros. Eu sentia o peito apertado, como se cada palavra dela fosse mais um peso sobre os meus ombros já cansados. O relógio marcava 19h47 e eu ainda não tinha coragem de responder à mensagem do meu pai, que dizia apenas: “Precisamos de falar.”
Desde pequena, sempre fui aquela filha que tentava agradar a todos. A Inês certinha, que tirava boas notas, ajudava nas tarefas e nunca levantava a voz. Mas, por dentro, sentia-me invisível. O meu irmão, Tiago, era o rebelde da família. Saía à noite, chegava tarde e trazia problemas para casa. Mesmo assim, parecia que toda a atenção era para ele — ou talvez fosse exatamente por isso.
Naquela noite, sentei-me à mesa com a minha mãe. Ela olhou-me nos olhos e disse:
— Estás a perder-te, filha. Não podes viver à espera dos outros.
Engoli em seco. Queria responder-lhe, dizer-lhe que ela não entendia, mas as palavras ficaram presas na garganta. O telemóvel vibrou. Era uma mensagem da Sofia: “Desculpa, não vou conseguir ir hoje. Está tudo complicado cá em casa.”
Senti-me sozinha. Sofia era a minha melhor amiga desde o secundário, mas ultimamente parecia distante. As nossas conversas resumiam-se a mensagens rápidas e desculpas esfarrapadas. Senti saudades dos tempos em que passávamos tardes inteiras a rir no jardim da escola, sem preocupações nem pressas.
O meu pai entrou na sala sem bater à porta.
— Inês, precisamos mesmo de falar.
Olhei para ele, tentando adivinhar se vinha aí mais uma discussão sobre o Tiago ou se era sobre mim desta vez.
— O teu irmão foi apanhado outra vez com más companhias — disse ele, sem rodeios. — E tu? Sempre fechada no teu mundo… Não sei o que se passa contigo.
A raiva subiu-me à cabeça.
— Talvez se olhassem para mim de vez em quando percebessem! — gritei, surpreendendo até a mim própria.
O silêncio caiu como uma pedra entre nós. O meu pai olhou-me como se estivesse a ver-me pela primeira vez.
— Inês… — começou ele, mas eu já estava a subir as escadas para o meu quarto.
Fechei a porta com força e deixei-me cair na cama. As lágrimas correram-me pelo rosto sem pedir licença. Senti-me ridícula por chorar por coisas tão pequenas, mas naquele momento tudo parecia demasiado pesado.
Peguei no diário que guardava na gaveta da mesa de cabeceira e comecei a escrever:
“Hoje percebi que ninguém repara em mim até eu gritar. Será que é sempre assim? Será que só existo quando faço barulho?”
Na manhã seguinte, acordei com o som do telemóvel. Era uma mensagem do Miguel: “Bom dia! Queres tomar um café depois das aulas?”
O Miguel era diferente. Conhecemo-nos na faculdade de Letras em Lisboa. Ele tinha um sorriso fácil e uma maneira de falar que me fazia sentir especial. Com ele, sentia-me vista — ou pelo menos queria acreditar nisso.
Aceitei o convite e passei o dia ansiosa pelo encontro. Quando finalmente nos sentámos numa esplanada perto do Campo Grande, ele olhou-me nos olhos e perguntou:
— Estás bem? Pareces distante.
Sorri, tentando disfarçar.
— Só estou cansada… coisas de casa.
Ele pegou na minha mão por baixo da mesa.
— Podes confiar em mim, sabes disso?
Queria acreditar nele. Queria mesmo. Mas havia sempre uma parte de mim que duvidava de tudo e de todos.
Os meses passaram e fui-me aproximando cada vez mais do Miguel. Ele era atencioso, mandava mensagens todos os dias e fazia-me sentir importante. Mas aos poucos comecei a notar pequenas mudanças: demorava mais a responder às mensagens, desmarcava encontros à última hora e parecia sempre distraído quando estávamos juntos.
Uma noite, depois de um jantar em casa dele, perguntei-lhe diretamente:
— Miguel, está tudo bem entre nós?
Ele hesitou antes de responder:
— Inês… eu gosto muito de ti, mas acho que preciso de algum espaço.
Senti o chão fugir-me dos pés. Tantas horas investidas, tantas conversas profundas… tudo parecia desmoronar-se num instante.
Voltei para casa em silêncio, sem conseguir chorar nem pensar. A minha mãe percebeu logo que algo não estava bem.
— O que se passa?
— Nada… — menti.
Ela sentou-se ao meu lado no sofá e puxou-me para junto dela.
— Filha, não podes dar tudo de ti aos outros esperando sempre receber o mesmo em troca. Às vezes as pessoas simplesmente não sabem retribuir.
As palavras dela ficaram a ecoar na minha cabeça durante dias. Comecei a reparar em todos os momentos em que dei demasiado: à família, aos amigos, ao Miguel… E percebi que quase nunca recebia o mesmo de volta.
O Tiago continuava a dar problemas em casa. Uma noite chegou bêbado e partiu um vaso no corredor. O meu pai gritou com ele até perder a voz. Eu tentei intervir, mas ninguém me ouviu.
No dia seguinte, sentei-me com o Tiago no jardim das traseiras da nossa casa em Sintra.
— Porque é que fazes isto? — perguntei-lhe baixinho.
Ele olhou para mim com os olhos vermelhos e respondeu:
— Porque ninguém espera nada de mim além disto…
Nesse momento percebi que todos nós estávamos presos num ciclo de expectativas não correspondidas. Eu tentava ser perfeita para agradar aos outros; ele fazia asneiras porque já ninguém acreditava nele.
A Sofia afastou-se ainda mais depois disso. Um dia liguei-lhe e ela atendeu com voz fria:
— Inês, desculpa… mas acho que estamos em fases diferentes da vida.
Senti um vazio enorme dentro de mim. Como é possível perder alguém sem sequer haver uma discussão? Só o tempo se encarrega de afastar as pessoas?
Comecei a sair mais sozinha. Ia ao cinema sem companhia, passeava pelos jardins da Gulbenkian ao fim da tarde e escrevia no meu diário quase todos os dias. Aos poucos fui aprendendo a gostar da minha própria companhia — mas ainda doía saber que tinha dado tanto de mim a quem não soube valorizar.
Um dia recebi uma mensagem inesperada do Miguel: “Podemos falar? Sinto saudades tuas.” Fiquei horas a olhar para aquela mensagem sem saber o que fazer. Parte de mim queria correr para ele; outra parte sabia que merecia mais do que migalhas de atenção.
Respondi apenas: “Preciso de tempo para mim.” E pela primeira vez senti-me orgulhosa dessa escolha.
Hoje olho para trás e vejo todas as vezes em que me anulei pelos outros: pela família, pelos amigos, pelo amor. Percebo agora que ninguém vai valorizar o nosso tempo se nós próprios não o fizermos primeiro.
Às vezes pergunto-me: quantas vezes mais vamos dar partes de nós a quem não sabe cuidar delas? Será possível aprender a dizer basta antes de nos perdermos completamente?