O Preço de um Casamento: Quando o Amor Divide a Família

— Não vou permitir que ela entre nesta casa, Marco! — A voz da minha mãe ecoou pela sala, cortando o silêncio como uma lâmina afiada. Eu estava sentada no sofá, com as mãos trémulas, a olhar para o chão, enquanto o meu irmão enfrentava a tempestade de frente.

— Mãe, por favor… — Marco tentou manter a calma, mas eu conhecia aquele tom na voz dele. Era o mesmo de quando éramos crianças e ele tentava convencer os nossos pais a deixá-lo sair à noite. Só que agora era diferente. Agora era sobre amor, sobre futuro, sobre tudo aquilo que nunca imaginámos que pudesse separar-nos.

A minha mãe estava de pé, rígida como uma estátua, os olhos brilhando de raiva e mágoa. O meu pai, sentado na poltrona ao lado, mantinha-se em silêncio, mas o maxilar cerrado denunciava a tensão. Eu sentia-me pequena, esmagada pelo peso da situação. O casamento do Marco com a Sofia devia ser motivo de alegria, mas ali estávamos nós, à beira de um abismo.

— Ela não é digna de ti! — insistiu a minha mãe, a voz embargada. — Aquela família… toda a gente sabe o que fizeram ao teu tio António! Não vou permitir que tragas essa vergonha para dentro da nossa casa!

O Marco olhou para mim, procurando apoio. Eu queria dizer-lhe que tudo ia correr bem, que o amor vence sempre, mas as palavras ficaram presas na garganta. Lembrei-me do dia em que ele me contou que ia pedir a Sofia em casamento. Os olhos dele brilhavam de felicidade e eu senti-me tão orgulhosa. Mas agora, tudo parecia desmoronar-se.

— Mãe, já chega! — explodiu Marco. — Eu amo a Sofia! Não me interessa o passado da família dela! Eu não sou o tio António!

O meu pai levantou-se finalmente, a voz grave e pausada:

— Marco, tu sabes que não é só isso. Há coisas que não compreendes… Coisas que não deviam ser faladas.

Eu estremeci. Sempre soube que havia segredos na nossa família, histórias sussurradas à mesa do jantar, olhares trocados quando alguém mencionava certos nomes. Mas nunca pensei que esses segredos pudessem destruir-nos assim.

Naquela noite, depois de todos se recolherem aos quartos, fui ter com o Marco ao jardim. Ele estava sentado no banco de pedra onde costumávamos brincar em crianças.

— Achas mesmo que vale a pena? — perguntei-lhe em voz baixa.

Ele olhou para mim com lágrimas nos olhos.

— Não consigo imaginar a minha vida sem ela, mana. Mas também não quero perder-vos…

Sentei-me ao lado dele e ficámos ali em silêncio, ouvindo apenas o som distante dos carros na estrada nacional. O cheiro da terra molhada misturava-se com as memórias da nossa infância: as corridas pelo quintal, as tardes de verão a apanhar amoras, as noites em que sonhávamos com futuros felizes.

No dia seguinte, a tensão continuava no ar como uma nuvem negra prestes a rebentar. A minha mãe recusava-se a falar com o Marco e o meu pai passava horas fechado no escritório. Eu sentia-me dividida entre os dois lados: queria apoiar o meu irmão, mas também não queria magoar os nossos pais.

Foi então que a Sofia apareceu à porta. Trazia um ramo de flores silvestres e um sorriso tímido.

— Olá, Luciana… Posso falar contigo?

Levei-a até ao jardim e sentámo-nos no mesmo banco onde estivera com o Marco na noite anterior.

— Sei que não sou bem-vinda aqui — começou ela, olhando para as mãos entrelaçadas no colo. — Mas amo o teu irmão. E só quero que ele seja feliz.

Olhei para ela e vi sinceridade nos olhos castanhos. Lembrei-me das histórias sobre a família dela: dívidas antigas, discussões com vizinhos, um escândalo qualquer envolvendo o tio António e o pai da Sofia. Mas também sabia que as pessoas mudam. Que os filhos não são responsáveis pelos erros dos pais.

— A minha mãe é teimosa — disse-lhe. — Mas talvez se vires falar com ela…

Sofia abanou a cabeça.

— Ela nunca vai aceitar-me. Já ouvi o suficiente para perceber isso.

Ficámos ali em silêncio durante uns minutos. Depois ela levantou-se e foi-se embora sem olhar para trás.

Nessa noite houve outra discussão. O Marco anunciou que ia casar com ou sem a bênção dos nossos pais. A minha mãe chorou como nunca a tinha visto chorar antes; o meu pai saiu de casa e só voltou de madrugada.

Os dias seguintes foram um inferno. Os vizinhos começaram a comentar; as tias ligavam todos os dias para saber novidades; até o padre da paróquia veio cá tentar apaziguar os ânimos. Eu sentia-me cada vez mais sufocada.

Uma tarde, encontrei uma carta antiga escondida no fundo de uma gaveta do escritório do meu pai. Era do tio António para o meu avô. Falava de uma dívida de jogo e de uma traição entre famílias. Percebi então que tudo aquilo era muito mais profundo do que parecia: havia feridas antigas nunca saradas, mágoas passadas de geração em geração.

Mostrei a carta ao Marco e ele ficou em silêncio durante muito tempo.

— Talvez devêssemos desistir… — murmurou ele finalmente.

Mas eu sabia que ele não queria desistir. E eu também não queria ver o meu irmão infeliz por causa de erros do passado que não eram dele.

Na véspera do casamento civil — porque religioso estava fora de questão sem a aprovação dos nossos pais — sentei-me com a minha mãe na cozinha.

— Mãe… — comecei, hesitante. — O Marco vai casar amanhã. Quer gostes ou não, ele ama a Sofia. E eu acho que merecem ser felizes.

Ela olhou para mim com os olhos vermelhos de tanto chorar.

— Não percebes… Se ele casar com ela, nunca mais vai ser bem-vindo nesta casa.

As palavras dela cortaram-me como facas. Mas respirei fundo e continuei:

— Se fizeres isso vais perder o teu filho para sempre.

Ela virou-se para a janela e ficou ali calada durante muito tempo.

No dia seguinte fui ao registo civil com o Marco e a Sofia. Éramos só nós três e dois amigos deles como testemunhas. O Marco estava nervoso mas feliz; a Sofia chorava baixinho enquanto assinava os papéis.

Quando saímos cá fora havia sol e um vento leve soprava pelo largo da vila. O Marco abraçou-me com força e agradeceu-me por estar ali.

Voltámos para casa em silêncio. Quando entrámos na sala, encontrámos a minha mãe sentada à mesa com uma mala feita ao lado dos pés.

— Vou passar uns dias em casa da tia Rosa — disse ela sem nos olhar nos olhos.

O meu pai estava no quintal, de costas para nós, a podar as roseiras como se nada tivesse acontecido.

Nessa noite jantámos em silêncio: eu, o Marco e a Sofia. A casa parecia vazia demais sem os gritos da minha mãe ou os resmungos do meu pai.

Passaram-se semanas até as coisas acalmarem um pouco. A minha mãe acabou por voltar para casa mas recusava-se a falar com o Marco ou com a Sofia. O meu pai mantinha-se distante mas menos hostil.

Eu continuava dividida: queria acreditar que tudo ia melhorar mas havia dias em que perdia a esperança.

Hoje olho para trás e pergunto-me: valeu a pena todo este sofrimento? Será que algum dia vamos conseguir perdoar-nos uns aos outros? Ou será este o preço inevitável do amor?

E vocês? Já passaram por algo assim? Até onde iriam para defender quem amam?