O Preço da Casa: Entre o Amor e as Expectativas
— Não podes recusar, Mariana. És a única que pode ajudar — a voz da minha mãe ecoava pela cozinha, misturando-se com o cheiro do café acabado de fazer e o tilintar nervoso da colher na chávena. Eu olhava para ela, sentada à mesa, com as mãos entrelaçadas e os olhos fixos nos meus, como se procurasse ali uma resposta que eu não queria dar.
A minha cunhada, Vera, estava encostada à ombreira da porta, os braços cruzados e o olhar carregado de uma raiva contida. — Tu tens dois apartamentos, Mariana. Eu e o Rui estamos a viver num T1 minúsculo com a Leonor. Achas justo? — atirou, sem rodeios.
Senti o sangue ferver-me nas veias. Não era justo. Nada daquilo era justo. Mas desde pequena que me diziam que eu era diferente. Que estudava demais, que queria demais, que sonhava demais. Cresci a ouvir o meu irmão Rui reclamar que eu era a preferida da mãe só porque tirava boas notas e não dava problemas. Mas ninguém via as noites em claro, o medo de falhar, o peso de ser sempre aquela de quem se espera tudo.
— O apartamento é meu — disse, tentando manter a voz firme. — Comprei-o com o meu dinheiro. Trabalhei anos para isso.
A minha mãe suspirou fundo, como se carregasse o mundo às costas. — O Rui também trabalha. A Vera também. Mas tu sempre tiveste mais oportunidades…
— Mais oportunidades? — interrompi, sentindo a garganta apertar-se-me. — Mãe, lembras-te de quando eu ia para a biblioteca estudar porque em casa não havia silêncio? Ou de quando trabalhei nos verões todos para pagar as propinas? O Rui podia ter feito o mesmo.
Vera bufou. — Sempre te achaste melhor do que nós. Agora tens dois apartamentos e não queres ajudar a família.
O silêncio caiu pesado sobre nós. Olhei para a minha mãe à espera de um gesto de compreensão, mas ela desviou o olhar para a chávena.
— Mariana, por favor… — murmurou. — A Leonor precisa de espaço. O Rui está cansado. Eu já não aguento vê-los assim.
Senti um nó no estômago. A Leonor era a minha sobrinha, tinha cinco anos e olhos grandes como os do pai. Era impossível não gostar dela. Mas aquilo era chantagem emocional e eu sabia-o.
Levantei-me da mesa e fui até à janela. Lá fora, Lisboa acordava devagarinho, indiferente ao drama que se desenrolava naquela cozinha minúscula de Chelas. Lembrei-me do dia em que assinei o contrato do meu primeiro apartamento: sozinha, orgulhosa, com lágrimas nos olhos porque finalmente tinha conquistado algo só meu.
— E se eu vos der o apartamento? — perguntei, sem me virar. — O que é que acontece depois? Quando precisarem de outra coisa, também vai ser minha responsabilidade?
Vera riu-se, amarga. — Não sejas dramática. Só queremos um pouco de justiça.
Justiça. A palavra ficou a ecoar-me na cabeça como um insulto. Onde estava a justiça quando eu passava noites sem dormir para conseguir um estágio? Quando tive de recusar festas e viagens porque não tinha dinheiro? Onde estava a justiça quando vi o Rui desistir da faculdade porque era mais fácil arranjar um trabalho qualquer?
— Mariana… — A voz da minha mãe era quase um sussurro agora. — Eu só quero ver os meus filhos felizes.
— E eu? — perguntei, virando-me finalmente para elas. — Eu não conto?
O silêncio foi ainda mais ensurdecedor desta vez.
Saí de casa nesse dia com o coração aos pulos e uma raiva surda a crescer dentro de mim. Passei horas a andar pela cidade, sem rumo, tentando perceber onde é que tinha falhado para ser vista como egoísta por querer guardar aquilo por que tanto lutei.
No trabalho, os colegas olhavam para mim como se fosse uma inspiração: Mariana, a engenheira que veio do nada e agora lidera projetos internacionais. Mas em casa… em casa eu era sempre aquela que devia mais do que recebia.
O Rui ligou-me nessa noite.
— Mariana, desculpa lá a Vera… Ela está stressada com a miúda e com o trabalho…
— E tu? O que é que tu achas? — perguntei-lhe.
Houve uma pausa longa do outro lado da linha.
— Eu só queria que as coisas fossem mais fáceis para nós…
— E achas justo ser à minha custa?
Ele não respondeu logo.
— Não sei… Talvez não seja justo… Mas tu tens tanto…
Desliguei antes de dizer algo de que me pudesse arrepender.
Nos dias seguintes, as mensagens da família multiplicaram-se: tias, primos, até vizinhos davam palpites sobre como eu devia ajudar “os meus”. Senti-me encurralada por uma rede invisível de expectativas e obrigações.
No trabalho comecei a falhar prazos. O chefe chamou-me ao gabinete.
— Está tudo bem contigo? Precisas de uns dias?
Quis gritar-lhe que não estava nada bem, que sentia o chão fugir-me dos pés sempre que pensava na família. Mas sorri e disse que era só cansaço.
À noite chorava sozinha no sofá do meu apartamento vazio, olhando para as paredes brancas onde sonhara pendurar quadros e fotografias das viagens que ainda queria fazer.
Uma semana depois voltei à casa da minha mãe para tentar resolver tudo de uma vez por todas.
— Decidi pôr o apartamento à venda — anunciei assim que entrei na cozinha.
A Vera arregalou os olhos.
— Vais vender? Então nem sequer ficas com ele nem nos dás?
— Vou vender e dividir o dinheiro entre nós os três: eu, tu e o Rui. Cada um faz o que quiser com a sua parte.
A minha mãe começou a chorar baixinho.
— Mariana… Não era isso que eu queria…
— Pois eu também não queria ter de escolher entre a minha felicidade e a vossa aprovação — respondi, sentindo finalmente uma estranha paz interior.
O Rui apareceu à porta nesse momento e ficou calado durante uns segundos antes de dizer:
— Se calhar é mesmo melhor assim…
A Vera saiu da cozinha sem dizer palavra. A minha mãe ficou sentada à mesa, encolhida como uma criança perdida.
Naquela noite dormi melhor do que em muitos meses. Pela primeira vez senti que tinha feito algo por mim sem ceder ao peso das expectativas dos outros.
Hoje olho para trás e pergunto-me: será egoísmo querer ser feliz à minha maneira? Ou será coragem finalmente dizer basta? E vocês, quantas vezes já sacrificaram os vossos sonhos pelos sonhos dos outros?