O Prato Partido: Entre Espumas e Segredos
— Não podes simplesmente ignorar isto para sempre, Sofia! — gritei da cozinha, a água quente a escorrer pelas minhas mãos enquanto esfregava vigorosamente um prato que parecia nunca mais ficar limpo. O barulho da televisão na sala abafava as minhas palavras, mas eu sabia que ela me ouvia. Sempre ouvia.
Ela não respondeu. O som da novela continuava, as vozes dramáticas dos atores misturando-se com o tilintar dos talheres que eu atirava para dentro do escorredor. Senti o peito apertar. Nunca gostei de lavar a loiça — era tarefa dela, pelo menos desde que o Miguel nasceu e eu comecei a fazer mais horas no escritório. Mas hoje, ao vê-la tão distante, perdida no ecrã como se o mundo à volta tivesse deixado de existir, decidi pegar eu na esponja. Talvez fosse só para evitar mais uma discussão. Talvez fosse para sentir que ainda conseguia fazer alguma coisa útil nesta casa.
A porta da rua bateu com força. O Miguel tinha saído há pouco para ir ter com os amigos, mas aquela pancada soou diferente. Um frio percorreu-me a espinha. Lembrei-me de quando era miúdo e ouvia os meus pais discutir na cozinha — sempre à volta da loiça, sempre à volta de pequenas coisas que escondiam problemas maiores.
— Sofia, precisamos mesmo de falar — insisti, tentando controlar o tom da voz. — Isto não pode continuar assim.
Ela levantou-se finalmente do sofá, arrastando os chinelos pelo chão de madeira. Veio até à porta da cozinha e encostou-se ao batente, braços cruzados.
— Falar sobre o quê, João? Sobre como já não nos suportamos? Sobre como fingimos todos os dias que está tudo bem só para o Miguel não perceber?
O prato escorregou-me das mãos e partiu-se no fundo do lava-loiça. O estalido seco ecoou pela casa. Fiquei a olhar para os cacos, sentindo-me tão partido quanto aquela loiça barata do Continente.
— Não digas isso — murmurei, a voz embargada. — Eu ainda te amo, Sofia. Só não sei como voltar ao que éramos antes.
Ela riu-se, um riso amargo e cansado.
— Antes de quê? Antes do Miguel? Antes das tuas horas extra? Antes de eu me sentir invisível nesta casa?
O silêncio caiu entre nós como uma cortina pesada. Lembrei-me do início, quando tudo era fácil. Os jantares em Alfama, as noites em que dançávamos fado na sala minúscula do nosso primeiro apartamento. Onde é que nos perdemos?
— Eu tentei — disse ela baixinho. — Tentei mesmo, João. Mas tu já não olhas para mim como antes. E eu… eu também já não sei se consigo continuar assim.
A água corria sem parar, enchendo o lava-loiça de espuma e cacos de porcelana. Senti as lágrimas a quererem saltar-me dos olhos, mas engoli em seco. Não podia chorar ali, não podia mostrar fraqueza.
— O Miguel vai perceber — sussurrei. — Ele já percebeu.
Ela abanou a cabeça.
— Ele é mais esperto do que nós dois juntos. E sabes o que é pior? Ele tem medo de nos perder aos dois.
Aquela frase ficou a ecoar na minha cabeça enquanto recolhia os pedaços do prato partido. Cada fragmento era um pedaço da nossa história: as discussões sobre dinheiro, as noites em claro com o Miguel doente, as promessas feitas e esquecidas.
— Lembras-te daquele verão em Sesimbra? — perguntei de repente, tentando agarrar-me a uma memória feliz. — Quando ficámos sem gasolina e tivemos de dormir no carro?
Ela sorriu pela primeira vez naquela noite.
— E tu ficaste furioso porque eu insisti em levar o cão… — respondeu ela, os olhos brilhando com uma nostalgia triste.
— E acabámos por rir tanto que nem conseguimos dormir — completei eu.
O silêncio voltou, mas desta vez era menos pesado. Senti uma réstia de esperança a nascer entre nós.
— Achas que ainda conseguimos voltar a ser assim? — perguntei, quase num sussurro.
Ela não respondeu logo. Veio até mim e pegou-me na mão molhada de detergente.
— Não sei, João. Mas talvez possamos tentar… pelo Miguel. Ou por nós.
Nesse momento ouvi a chave rodar na porta da rua. O Miguel entrou em casa, largando a mochila no chão com um estrondo familiar.
— Mãe? Pai? Está tudo bem? — perguntou ele da entrada.
Olhei para Sofia e vi nos olhos dela o mesmo medo e esperança que sentia em mim.
— Está tudo bem, filho — respondi, limpando as mãos ao avental e forçando um sorriso. — Só estamos a arrumar umas coisas por aqui.
Ele apareceu à porta da cozinha e olhou para nós com desconfiança adolescente.
— Vocês discutiram outra vez?
Sofia ajoelhou-se à frente dele e puxou-o para um abraço apertado.
— Às vezes os adultos também se perdem um bocadinho — disse ela suavemente. — Mas prometemos tentar encontrar-nos outra vez.
Miguel suspirou e revirou os olhos como só um adolescente sabe fazer.
— Desde que não partam mais pratos… — murmurou ele, arrancando-nos uma gargalhada inesperada.
Naquela noite, depois de o Miguel se fechar no quarto com os auscultadores nos ouvidos, sentei-me ao lado de Sofia no sofá. Não dissemos nada durante muito tempo. O som da televisão preenchia o espaço entre nós, mas já não era uma barreira intransponível.
Pensei em tudo o que tínhamos construído juntos — e em tudo o que ainda podíamos reconstruir se tivéssemos coragem suficiente para enfrentar os nossos próprios cacos.
Será possível colar um prato partido? Ou será que há coisas que nunca voltam a ser como eram? Talvez seja preciso aprender a viver com as cicatrizes… E vocês? Já sentiram que estavam a perder alguém sem saber como impedir?