O Potencial Invisível: Entre Respostas e Oportunidades
— Não, mãe! Eu não quero ir para a fábrica! — gritei, sentindo o nó na garganta apertar-se ainda mais. O cheiro do café acabado de fazer misturava-se com o aroma amargo da discussão matinal. Dona Lurdes, de avental e olhar cansado, pousou a chávena na mesa com força.
— E o que queres fazer, Leonor? Ficar em casa a sonhar? Aqui não há lugar para sonhos, filha. Há contas para pagar! — respondeu ela, a voz embargada entre a raiva e o desespero.
Naquele instante, senti-me esmagada pelo peso da realidade. Tinha dezassete anos e vivíamos numa aldeia esquecida do distrito de Viseu. O meu pai abandonara-nos quando eu era pequena, deixando a minha mãe sozinha com dois filhos para criar. O meu irmão mais novo, Tiago, ainda era uma criança e eu sentia que tinha de ser forte por ele. Mas dentro de mim, havia uma vontade insaciável de fugir dali, de estudar, de ser alguém diferente.
As manhãs começavam sempre com discussões. A minha mãe queria que eu aceitasse o trabalho na fábrica de confecções da vila. Era seguro, dizia ela. Um ordenado certo ao fim do mês. Mas eu sonhava com mais: queria estudar arquitetura paisagista, desenhar jardins, transformar espaços cinzentos em lugares vivos. Sempre que passava pelo jardim público — o único da vila — imaginava como poderia torná-lo mais bonito, mais acolhedor.
Certa tarde, enquanto ajudava o Tiago com os trabalhos de casa, ele olhou para mim com aqueles olhos grandes e sinceros:
— Mana, porque é que estás triste?
Sorri-lhe, tentando esconder as lágrimas que ameaçavam cair.
— Não estou triste, Tiago. Só estou cansada.
Ele não se convenceu. Pegou num lápis de cor e desenhou uma árvore enorme no caderno.
— Quando fores arquiteta, podes plantar árvores destas?
O coração apertou-se-me. Era como se ele visse em mim aquilo que eu própria já duvidava existir: potencial.
Na escola, a professora Margarida era a única que acreditava em mim. Um dia chamou-me à parte:
— Leonor, tens talento. Já pensaste em candidatar-te à universidade?
Baixei os olhos.
— Não tenho dinheiro para isso…
Ela sorriu e pousou uma mão no meu ombro.
— Há bolsas de estudo. E há pessoas dispostas a ajudar quem merece. Não desistas antes de tentar.
Voltei para casa com o coração aos saltos. Queria contar à minha mãe, mas temi a reação dela. À noite, ouvi-a chorar baixinho na cozinha. Fui ter com ela.
— Mãe…
Ela limpou as lágrimas apressadamente.
— O que foi agora?
— Eu quero tentar a universidade. A professora Margarida disse que posso concorrer a uma bolsa…
O silêncio caiu entre nós como uma pedra no poço. Finalmente, ela falou:
— E se não conseguires? E se te magoares? Eu só quero proteger-te, Leonor.
— Mas mãe… e se eu conseguir? — perguntei baixinho.
Ela olhou-me como se me visse pela primeira vez desde há muito tempo. Vi nos olhos dela o medo e o orgulho misturados.
Os dias seguintes foram um turbilhão de emoções. Preenchi papéis, escrevi cartas de motivação, pedi referências à professora Margarida. O Tiago ajudava-me como podia — desenhava jardins imaginários para me inspirar.
Quando finalmente chegou a carta da universidade, tremia tanto que mal consegui abrir o envelope. Fui aceite. E tinha direito a uma bolsa parcial.
Corri para casa, gritando:
— Consegui! Consegui!
A minha mãe abraçou-me com força. Chorámos as duas — lágrimas de alívio, de medo do futuro e de esperança.
Mas a vida não ficou mais fácil. A bolsa não cobria tudo e tive de trabalhar ao fim de semana num café da cidade universitária. Os colegas olhavam-me de lado por não poder sair à noite ou comprar livros novos. Senti-me sozinha muitas vezes.
Numa dessas noites solitárias, liguei à minha mãe:
— Mãe… não sei se aguento mais isto.
Ela ficou em silêncio por um momento e depois disse:
— Lembras-te quando eras pequena e caíste da bicicleta? Disseste que nunca mais ias andar nela… mas voltaste a tentar. E agora? Agora vais tentar outra vez.
As palavras dela deram-me força para continuar.
No último ano do curso, tive oportunidade de estagiar na Câmara Municipal da cidade vizinha. O meu projeto era reabilitar um jardim abandonado — exatamente como sonhara em criança. Trabalhei dias e noites nesse projeto. Quando finalmente foi inaugurado, levei o Tiago e a minha mãe lá.
O Tiago correu pelo relvado novo, riu-se ao ver as árvores que eu própria plantara.
— Mana! Plantaste mesmo árvores como aquelas dos meus desenhos!
A minha mãe olhou para mim com lágrimas nos olhos:
— Desculpa se alguma vez duvidei de ti…
Abracei-a com força.
Hoje sou arquiteta paisagista e trabalho para várias autarquias do interior do país. O Tiago está quase a acabar o secundário e sonha ser engenheiro ambiental. A minha mãe já não precisa de trabalhar tanto — ajudo-a como posso.
Às vezes pergunto-me: quantos talentos ficam por descobrir nas aldeias deste país? Quantos sonhos são sufocados pelo medo ou pela falta de oportunidades? Se ninguém tivesse acreditado em mim — nem que fosse só o Tiago com os seus desenhos — teria eu conseguido chegar aqui?
E vocês? Quem foi a pessoa que acreditou em vocês quando ninguém mais acreditava?