O Plano de Reforma do Jovem Chefe: Quando Tudo Sai do Controle

— Não me vais fazer isto, pois não, Miguel? — A voz do senhor Álvaro tremia, mas os olhos mantinham-se firmes nos meus. O relógio da parede marcava 18h47, e o escritório estava vazio, exceto por nós dois e o eco das palavras que pairavam no ar.

Eu, Miguel Duarte, 32 anos, chefe de departamento na empresa de consultoria financeira Silva & Filhos, sentia o suor escorrer-me pelas costas. Tinha preparado aquele discurso durante dias. Era suposto ser simples: agradecer ao Álvaro pelos seus 38 anos de serviço e sugerir-lhe, com toda a diplomacia possível, que estava na altura de pensar na reforma. Mas nada me preparou para o olhar magoado daquele homem que sempre vi como um pilar inabalável.

— O senhor Álvaro… — tentei começar, mas ele interrompeu-me.

— Não me trate por senhor agora. Sempre fui só o Álvaro para ti, Miguel. — A sua voz era baixa, mas carregada de mágoa.

Senti um nó na garganta. Lembrei-me de quando entrei na empresa, há dez anos, e ele foi o primeiro a mostrar-me onde ficava a máquina do café e a apresentar-me aos outros colegas. Sempre me tratou com respeito, mesmo quando fui promovido acima dele. Mas agora, ali sentado à minha frente, parecia mais pequeno, quase frágil.

— Álvaro… — respirei fundo — Não é fácil para mim dizer isto. Mas a direção quer renovar a equipa. Acham que está na altura de dar lugar aos mais novos…

Ele riu-se, um riso amargo.

— Aos mais novos? Tu sabes o que isso quer dizer? Que querem alguém que aceite trabalhar até às dez da noite sem reclamar, alguém que não faça perguntas nem tenha coragem de dizer quando algo está errado.

Fiquei em silêncio. No fundo, sabia que ele tinha razão. A empresa estava a mudar. Os valores antigos já não interessavam a ninguém. O importante era produtividade, resultados rápidos, lucros acima de tudo.

— Não é só isso… — tentei justificar-me. — A reforma pode ser uma oportunidade para ti. Tens netos, podes viajar…

Ele levantou-se devagar.

— Sabes o que é acordar todos os dias sem saber o que fazer? Sabes o que é sentir que já não fazes falta a ninguém? — Os olhos dele brilhavam com lágrimas contidas. — Eu perdi a minha mulher há dois anos. O trabalho era tudo o que me restava.

Senti-me miserável. Quem era eu para decidir quando alguém devia deixar de trabalhar? Mas já não havia volta a dar. A decisão estava tomada pela direção. Eu era apenas o mensageiro — ou pelo menos era isso que queria acreditar.

Naquela noite, não consegui dormir. O rosto do Álvaro perseguia-me nos sonhos. No dia seguinte, o ambiente no escritório estava estranho. Os colegas cochichavam nos corredores. A notícia espalhara-se depressa demais.

A Marta, minha colega e amiga desde os tempos da faculdade, aproximou-se de mim à hora do almoço.

— Miguel, ouviste o que se diz? Que foste tu que despachaste o Álvaro…

— Não foi bem assim… — tentei explicar.

Ela olhou-me com uma expressão dura.

— Sabes que ele sempre te defendeu quando os outros diziam que eras demasiado novo para ser chefe? Agora sentem-se todos traídos.

O peso da culpa começou a esmagar-me. Tentei concentrar-me no trabalho, mas as mensagens anónimas começaram a chegar: “Traidor”, “És igual aos outros”, “Não tens coração”. Até o meu pai me ligou nessa noite.

— Miguel, ouvi dizer que despediste o Álvaro… O homem sempre foi correto contigo! — A voz dele era dececionada.

Expliquei-lhe tudo como pude, mas percebi que nem ele acreditava nas minhas justificações.

Os dias seguintes foram um inferno. O departamento dividiu-se em dois grupos: os que achavam que eu tinha feito o correto e os que me viam como um oportunista sem escrúpulos. As reuniões tornaram-se tensas; os olhares evitavam encontrar os meus.

Uma tarde, ao sair do trabalho, encontrei a filha do Álvaro à porta da empresa. A Ana era uma mulher forte, mas naquele momento parecia desfeita.

— O meu pai não sai de casa há três dias — disse ela, com voz trémula. — Ele sente-se humilhado. Sempre disse que tu eras diferente dos outros…

Não consegui responder. Senti uma vontade imensa de desaparecer dali.

Em casa, a minha mulher tentava animar-me:

— Fizeste o teu trabalho, Miguel. Não podes carregar o mundo às costas.

Mas eu sabia que podia ter feito diferente. Podia ter lutado por ele junto da direção, podia ter arranjado uma saída mais digna. Em vez disso, limitei-me a cumprir ordens.

Uma semana depois, recebi um email do Álvaro:

“Não te culpo por nada disto. Só espero que um dia percebas como é sentir-se descartável.”

Chorei ao ler aquelas palavras. Pela primeira vez em muitos anos senti-me verdadeiramente sozinho.

O tempo passou e as coisas acalmaram-se no escritório. Vieram novos colegas, jovens cheios de energia e ambição. Mas faltava-lhes algo — aquela sabedoria tranquila do Álvaro, aquela capacidade de ouvir antes de falar.

Um dia, ao arrumar umas caixas antigas no arquivo, encontrei uma fotografia tirada no nosso primeiro jantar de Natal da empresa: eu e o Álvaro lado a lado, a rir como se nada pudesse abalar aquela amizade improvável.

Olhei para a foto durante muito tempo e perguntei-me: será isto sucesso? Subir na carreira à custa dos outros? Ou será que há coisas mais importantes do que títulos e salários?

Agora escrevo estas palavras com um peso no peito e uma dúvida que não me larga: será que algum dia vou conseguir perdoar-me? E vocês, já tiveram de escolher entre fazer o correto e fazer o esperado? Como lidaram com isso?