O Peso Invisível do Amor: A História de Ema e de Mim
— Não vais comer mais, pois não, Ema? — A voz da minha mãe cortou o silêncio da sala como uma faca. O garfo de Ema ficou suspenso no ar, os olhos dela fixos no prato de arroz de pato que eu tinha acabado de servir. O cheiro do forno ainda pairava no ar, misturado com a tensão que se instalava sempre que a minha família se reunia à mesa.
Eu queria desaparecer. Queria que a mesa se abrisse e me engolisse, ou que pelo menos alguém mudasse de assunto. Mas ninguém o fez. O meu pai pigarreou, a minha irmã mais nova olhou para o telemóvel e a minha avó suspirou alto, como se carregasse o peso do mundo nos ombros.
Ema pousou o garfo devagar. — Só mais um bocadinho, Dona Teresa. Está tão bom…
A minha mãe não respondeu. Limitou-se a olhar para Ema com aquele olhar de quem acha que está a fazer um favor ao mundo ao dizer o que pensa. Eu sabia o que vinha a seguir. Sabia porque já tinha ouvido mil vezes: “Se continuas assim, nunca vais arranjar namorado”, “A saúde é importante”, “Pensa na tua mãe”.
Mas Ema sorriu, aquele sorriso triste que só eu sabia decifrar. Eu queria defendê-la, mas as palavras ficaram presas na garganta. Senti-me cobarde.
Depois do jantar, fomos para o meu quarto. Ema sentou-se na cama e ficou a olhar para as mãos.
— Achas que ela tem razão? — perguntou-me em voz baixa.
— Não — respondi logo, mas soou falso até para mim. — Tu és linda assim.
Ela riu-se, mas os olhos estavam húmidos. — Sabes, às vezes penso que se fosse magra tudo seria mais fácil. Até cozinhar seria diferente. As pessoas não olhavam para mim como se eu fosse um fracasso ambulante.
Lembrei-me das tardes em que Ema cozinhava para todos: bolos de laranja para as festas da aldeia, pão-de-ló para a Páscoa, arroz doce para os vizinhos doentes. Ninguém recusava a comida dela, mas todos tinham sempre uma palavra sobre o seu corpo.
— Não deixes que eles te definam — tentei animá-la. — Tu és muito mais do que isso.
Ela encolheu os ombros. — Às vezes penso que nem tu acreditas nisso.
Fiquei sem resposta. Porque era verdade: até eu, no fundo, sentia vergonha quando via os olhares dos outros na rua. Sentia raiva de mim mesma por não conseguir protegê-la.
No dia seguinte, fomos ao café da vila. O senhor António estava ao balcão, como sempre.
— Olha as meninas! — exclamou ele. — Ema, tens de experimentar o novo bolo de chocolate da minha mulher!
Ema sorriu e agradeceu, mas recusou educadamente. Eu vi o olhar trocista do senhor António e ouvi-o murmurar para a mulher: “Ela já tem reservas para o inverno todo”.
Senti o sangue ferver-me nas veias.
— Que falta de respeito! — sussurrei-lhe quando saímos.
Ema encolheu os ombros outra vez. — Já estou habituada.
Mas eu não estava. E naquele dia decidi que não ia ficar calada.
Na escola, as coisas não eram melhores. Os colegas riam-se dela nas aulas de Educação Física. Chamavam-lhe nomes pelas costas: “Baleia”, “Trator”, “Tonel”. Uma vez, um rapaz chamado Rui escondeu-lhe a roupa no balneário e ela teve de sair enrolada numa toalha. Eu quis bater-lhe, mas Ema só chorou em silêncio no meu ombro.
Em casa dela, as coisas também não eram fáceis. A mãe da Ema era costureira e passava os dias a dizer-lhe que precisava de emagrecer para ser feliz. O pai era camionista e estava quase sempre fora, mas quando vinha só dizia: “Tens de te cuidar, filha”.
Uma noite, depois de mais uma discussão em casa dela sobre dietas e ginásios, Ema apareceu à minha porta com os olhos inchados.
— Não aguento mais — disse-me. — Sinto que nunca vou ser suficiente para ninguém.
Abracei-a com força. — És suficiente para mim.
Ela chorou até adormecer no meu colo.
Os meses passaram e Ema começou a afastar-se. Faltava às aulas, evitava sair comigo, deixou de cozinhar para os outros. Eu sentia-a a desaparecer aos poucos e não sabia como ajudá-la.
Um dia recebi uma mensagem dela: “Preciso falar contigo”.
Encontrei-a sentada num banco do jardim da vila, com um ar cansado e triste.
— Fui ao médico — disse-me sem rodeios. — Tenho problemas no coração. Preciso mesmo de mudar…
Senti um nó na garganta. — Vais conseguir. Eu ajudo-te.
Ela abanou a cabeça. — Não sei se quero lutar por mim ou pelos outros…
Ficámos em silêncio durante muito tempo. O vento fazia dançar as folhas das árvores e eu pensei em tudo o que nunca lhe tinha dito: o quanto admirava a sua força, o quanto me inspirava a sua generosidade, o quanto me doía vê-la sofrer.
Nessa noite escrevi-lhe uma carta:
“Querida Ema,
Sei que o mundo é cruel contigo porque não encaixas nos padrões deles. Mas tu és muito mais do que um corpo ou um número na balança. És a pessoa mais bondosa que conheço, aquela que faz bolos para quem está triste e sorri mesmo quando tudo dói por dentro. Não deixes que te roubem isso.”
No dia seguinte entreguei-lhe a carta antes das aulas. Ela leu-a em silêncio e depois abraçou-me com força.
— Obrigada por nunca desistires de mim — sussurrou.
A partir daí começámos juntas uma nova rotina: caminhadas ao fim da tarde pelos campos cheios de oliveiras, receitas saudáveis inventadas por ela (sempre deliciosas), tardes de conversa sincera sobre tudo o que nos magoava.
Houve recaídas, lágrimas e discussões. Houve dias em que ela queria desistir e eu também me sentia cansada de lutar contra o mundo inteiro.
Mas aos poucos Ema voltou a sorrir com verdade. Voltou a cozinhar para os outros — agora sem medo dos olhares ou dos comentários maldosos.
No Natal desse ano organizámos juntas um jantar solidário na igreja da vila. Toda a gente apareceu: velhos e novos, ricos e pobres, magros e gordos. Ema serviu arroz doce com um sorriso genuíno e eu vi nos olhos dela algo novo: orgulho.
No fim da noite dançámos juntas no adro da igreja enquanto caía uma chuva miudinha. Pela primeira vez em muito tempo senti esperança.
Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas pessoas vivem presas ao peso invisível do olhar dos outros? Quantas amizades se perdem porque temos medo de defender quem amamos? Será que algum dia vamos aprender a ver além das aparências?