O Peso Invisível de um Casamento Perfeito
— Mariana, estás bem? — perguntei, tentando disfarçar o nervosismo na minha voz enquanto segurava a porta do elevador. Ela hesitou antes de responder, os olhos fugindo dos meus, como se procurasse uma saída invisível.
— Estou, claro… só um pouco cansada — murmurou, forçando um sorriso que não chegava aos olhos.
Aquele sorriso. Sempre admirei a Mariana. Desde que me mudei para este prédio em Benfica, há três anos, ela era a vizinha que todos invejavam: elegante, educada, sempre com uma palavra simpática para todos. Lembro-me de pensar que ela parecia ter saído de uma daquelas revistas de decoração — casa impecável, marido charmoso, vida perfeita. Mas nos últimos meses, algo nela tinha mudado. As olheiras profundas, o cabelo apanhado à pressa, a voz cada vez mais baixa. E aquele olhar perdido, como se estivesse sempre noutro lugar.
Naquela manhã, enquanto subíamos juntas no elevador, reparei numa pequena nódoa negra no pulso dela. O meu coração acelerou. Não era a primeira vez que via marcas estranhas nos braços ou no pescoço dela. Mas nunca tive coragem de perguntar diretamente.
— Se precisares de alguma coisa… sabes que podes contar comigo, não sabes? — arrisquei.
Ela olhou-me por um segundo, os olhos marejados de lágrimas não choradas. Ia dizer qualquer coisa, mas nesse instante o elevador parou no nosso andar e a porta abriu-se. O Rui estava à espera dela no corredor, impaciente.
— Mariana! Estás sempre atrasada — disse ele, num tom baixo mas cortante.
Ela encolheu-se ligeiramente e apressou o passo. Antes de entrar em casa, lançou-me um olhar rápido — um pedido de ajuda silencioso? Ou apenas vergonha?
Fiquei ali parada, com as compras nas mãos e o coração apertado. O resto do dia passou-se numa névoa. Não conseguia parar de pensar nela. E se estivesse mesmo a acontecer alguma coisa? E se eu pudesse fazer alguma diferença?
Naquela noite, ouvi gritos abafados vindos do apartamento deles. Não era a primeira vez. O prédio era antigo e as paredes finas. Mas naquela noite os gritos pareceram mais desesperados do que nunca.
No dia seguinte, encontrei-a nas escadas. Trazia óculos escuros e uma camisola de gola alta apesar do calor sufocante de junho em Lisboa.
— Mariana… — comecei.
Ela interrompeu-me com um gesto rápido.
— Por favor, não digas nada. Não te metas — sussurrou, quase inaudível.
Fiquei sem palavras. Senti-me impotente e furiosa ao mesmo tempo. Como podia ela pedir-me para não fazer nada? Como podia eu fingir que não via?
Durante semanas tentei encontrar uma forma de ajudar sem invadir o espaço dela. Convidei-a para tomar café em minha casa. Às vezes ela aceitava, outras vezes inventava desculpas. Quando vinha, falávamos de tudo menos do Rui ou do casamento. Falávamos de livros, de filmes antigos portugueses, das saudades que ambas tínhamos do mar da nossa infância no Algarve.
Mas havia sempre um silêncio pesado entre nós — como se ambas soubéssemos que havia um elefante na sala mas nenhuma tivesse coragem de o nomear.
Uma tarde, enquanto bebíamos chá na varanda e víamos os elétricos passarem lá em baixo, ela finalmente desabafou:
— Sabes… às vezes sinto que estou a desaparecer. Que já não sou eu. Que sou só… a mulher dele.
Fiquei sem saber o que dizer. O silêncio prolongou-se até ser interrompido pelo som do telemóvel dela. Era o Rui.
— Tenho de ir — disse ela apressada, guardando o telemóvel na mala com mãos trémulas.
Depois desse dia, comecei a reparar em pequenos detalhes: como ela evitava sair sozinha à rua; como o Rui controlava tudo — desde as compras até às visitas da família; como ela já quase não falava com ninguém no prédio.
Uma noite ouvi barulho no corredor e espreitei pelo olho mágico. Vi Mariana sentada no chão junto à porta deles, a chorar baixinho. Saí para junto dela sem pensar duas vezes.
— Anda comigo para dentro — disse-lhe suavemente.
Ela hesitou mas acabou por entrar no meu apartamento. Ficámos sentadas no sofá durante horas. Ela contou-me tudo: as humilhações diárias, as palavras cruéis do Rui, os ciúmes doentios, as ameaças veladas. Nunca tinha batido nela com força suficiente para deixar marcas visíveis — mas as feridas invisíveis eram muito mais profundas.
— Ele diz que ninguém vai acreditar em mim — confessou ela entre soluços. — Que toda a gente acha que somos o casal perfeito.
Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. Como podia alguém destruir assim outra pessoa?
Nos dias seguintes tentei convencê-la a pedir ajuda: à família, à polícia, a uma associação de apoio às vítimas de violência doméstica. Mas ela tinha medo — medo do escândalo, medo de ficar sozinha, medo do próprio Rui.
Até que um dia tudo mudou.
Era domingo e estava a chover torrencialmente. Ouvi uma discussão ainda mais violenta do que o habitual vinda do apartamento deles. De repente ouvi um estrondo e depois silêncio absoluto.
O meu coração gelou. Liguei imediatamente para a polícia e fui bater à porta deles sem pensar nas consequências.
O Rui abriu a porta com ar furioso:
— O que é que queres?! — gritou ele.
— Quero falar com a Mariana! — respondi com uma firmeza que nem sabia ter.
Nesse momento vi-a ao fundo do corredor: pálida, trémula, com sangue no lábio.
A polícia chegou pouco depois e levou o Rui para prestar declarações. Mariana ficou comigo nessa noite. Chorou até adormecer nos meus braços como uma criança perdida.
Nos dias seguintes ajudei-a a procurar apoio psicológico e um advogado. A família dela veio do Algarve para estar ao lado dela — finalmente perceberam aquilo que ela tentava esconder há tanto tempo.
O processo foi longo e doloroso. O Rui tentou tudo para desacreditá-la: espalhou boatos pelo prédio, tentou manipular amigos em comum, ameaçou-a várias vezes por telefone. Mas desta vez Mariana não estava sozinha.
Vi-a renascer aos poucos: voltou a sorrir com sinceridade; voltou a usar vestidos coloridos; voltou a falar alto e a rir sem medo. Começou a trabalhar numa livraria perto do Marquês de Pombal e fez novas amizades.
Hoje olho para ela e vejo uma mulher diferente — mais forte, mais livre, mais dona de si mesma.
Às vezes pergunto-me quantas “Marianas” existem por aí atrás das portas fechadas dos nossos prédios lisboetas? Quantas histórias como esta passam despercebidas porque todos preferimos acreditar nas aparências?
E tu? O que farias se soubesses que alguém ao teu lado está a sofrer em silêncio?