O Peso do Silêncio: Quando a Sogra se Torna o Espelho da Minha Dor
— Tu nunca vais ser suficiente para o meu filho, Joana. — As palavras de Dona Lurdes ecoaram pela cozinha, misturando-se com o cheiro do café acabado de fazer. Eu estava de costas, a tentar não tremer enquanto mexia o açúcar na chávena. Rogério ainda dormia, alheio à tempestade que se formava todos os dias entre mim e a mãe dele.
Lembro-me do primeiro dia em que entrei naquela casa, há catorze anos. O sorriso de Dona Lurdes era uma máscara bem desenhada, mas os olhos avaliavam-me como quem examina uma peça de fruta no mercado. Rogério segurava-me a mão com força, talvez já adivinhando o que viria a seguir. “Ela é só um pouco protetora”, dizia-me ele, sempre a tentar justificar os comentários cortantes, as perguntas invasivas, o controlo sufocante.
No início, tentei agradar-lhe. Aprendi as receitas dela, ajudei nas limpezas, ofereci presentes no aniversário. Mas nada era suficiente. “A Joana não sabe fazer arroz como eu”, dizia ela à mesa, olhando para Rogério como se esperasse que ele concordasse. Ele sorria amarelo, mudava de assunto. Eu engolia em seco.
Os anos passaram e a pressão aumentou. Quando engravidei da nossa filha, Mariana, Dona Lurdes fez questão de me lembrar que “as mulheres da família sempre tiveram partos difíceis” e que eu devia preparar-me para o pior. No hospital, ela entrou no quarto sem bater, criticou o nome que escolhemos e disse à enfermeira que eu era “muito fraca para ser mãe”. Chorei baixinho quando todos saíram.
Rogério tentava ser mediador, mas nunca enfrentou verdadeiramente a mãe. “Ela é assim com toda a gente”, dizia ele. Mas eu sabia que não era verdade. Com o irmão dele, Paulo, Dona Lurdes era doce e protetora. Comigo, era fria como gelo.
A gota de água foi no Natal passado. Estávamos todos sentados à mesa quando Dona Lurdes comentou alto: — Se calhar o Rogério devia ter escolhido alguém mais parecido com ele… alguém da nossa terra.
O silêncio caiu pesado. Mariana olhou para mim com olhos assustados. Levantei-me e fui para a varanda respirar. Lá fora, ouvi Paulo dizer baixinho: — Mãe, já chega.
Mas ela nunca parava.
Este ano tudo mudou. Paulo casou-se com Sofia, uma mulher decidida e sem papas na língua. Logo no primeiro jantar de família, Sofia respondeu à letra a Dona Lurdes: — A senhora tem muita opinião sobre tudo, mas aqui em casa mando eu.
Vi Dona Lurdes empalidecer. Pela primeira vez em anos, ficou sem resposta.
Desde então, Dona Lurdes tem vindo desabafar comigo. Liga-me a chorar porque Sofia não a convida para jantar, porque não aceita conselhos sobre como criar os filhos, porque “não tem respeito pelos mais velhos”.
— Agora percebo como te sentiste todos estes anos — disse-me ela há dias, com a voz embargada.
Fiquei sem saber o que responder. Parte de mim queria abraçá-la e dizer-lhe que tudo ia ficar bem. Outra parte queria gritar: “Agora sabes! Agora sentes na pele!”
Rogério percebeu a mudança no ar cá em casa. — Achas que devias perdoar a minha mãe? — perguntou-me uma noite.
Olhei para ele demoradamente. — Não sei se é uma questão de perdão… Acho que é uma questão de justiça.
Ele suspirou e abraçou-me. — Só quero que fiques bem.
Mas será possível ficar bem depois de tantos anos de dor calada? Será justo virar as costas agora que ela precisa de mim? Ou será que finalmente chegou o momento de quebrar este ciclo de amargura?
Às vezes pergunto-me: quantas Joanas existem por aí, presas entre o amor pelo marido e o veneno da sogra? E será que algum dia conseguimos mesmo libertar-nos desse peso?