O Peso do Prato: Quando a Generosidade se Torna um Fardo
— Outra vez arroz, Dona Teresa? — ouvi a vozinha do Tiago, já à porta da minha cozinha, antes mesmo de eu conseguir pousar a travessa na mesa.
Suspirei, sentindo o peso do avental nos ombros. Era como se cada grão de arroz que caía no prato dele fosse mais uma gota de ansiedade a escorrer-me pelo peito. Olhei para o relógio: 19h10. A mãe dele, a Dona Carla, ainda não tinha chegado do trabalho. Ou talvez tivesse chegado e, como tantas outras vezes, preferisse deixar o filho comigo até mais tarde, para poder descansar um pouco ou tratar dos seus próprios assuntos.
— Senta-te, Tiago. Está quente — disse-lhe, tentando sorrir.
Ele sentou-se à mesa com aquela inocência de quem não percebe o que se passa à sua volta. Tinha oito anos e um apetite voraz. Enquanto ele comia, eu tentava convencer-me de que estava a fazer uma boa ação. Afinal, era só um prato de comida. Mas já lá iam meses desde que isto começou — primeiro uma vez por semana, depois duas, agora quase todos os dias.
A primeira vez foi diferente. Lembro-me bem: estava a chover torrencialmente e ouvi bater à porta. Dona Carla apareceu, encharcada e aflita.
— Dona Teresa, desculpe incomodar… O Tiago ficou sozinho e eu ainda estou presa no trânsito. Pode dar-lhe qualquer coisa para comer?
Claro que podia. Sempre fui assim — pronta a ajudar. Mas o que era para ser exceção tornou-se regra. E agora sentia-me presa numa rotina que não era minha.
Quando Dona Carla finalmente apareceu naquela noite, já passava das oito. Entrou apressada, cabelo desgrenhado e olhos cansados.
— Ai, Dona Teresa, mil desculpas! O trabalho está impossível… Nem sei como agradecer-lhe!
Sorri-lhe, mas por dentro sentia-me a arder. Queria dizer-lhe que não podia continuar assim, que também tinha a minha vida, os meus problemas. Mas as palavras ficavam-me presas na garganta.
— Não faz mal, Dona Carla. O Tiago já jantou — respondi, tentando esconder o cansaço na voz.
Ela sorriu-me com gratidão e levou o filho para casa. Fechei a porta devagarinho e encostei-me a ela, sentindo as lágrimas ameaçarem cair.
No dia seguinte, ao descer as escadas para ir ao supermercado, cruzei-me com a vizinha do terceiro andar, a Dona Lurdes.
— Então, Teresa? Sempre a cuidar do menino da Carla? — perguntou ela com aquele tom meio trocista.
— Pois… — murmurei, sem saber o que dizer.
— Olhe que ela está a aproveitar-se de si! — atirou ela antes de desaparecer escada abaixo.
As palavras dela ficaram-me a ecoar na cabeça todo o dia. Estaria mesmo a ser usada? Ou era só imaginação minha?
À noite, enquanto cortava cebola para o refogado, dei por mim a pensar na minha própria solidão. Desde que o António morreu, há três anos, a casa parecia maior e mais fria. Talvez fosse por isso que me custava tanto dizer não ao Tiago — ele enchia-me a casa de vida e barulho. Mas até que ponto devia sacrificar o meu tempo e energia?
Naquela semana, tentei ser firme comigo mesma: não ia convidar o Tiago para jantar. Mas quando batiam à porta às sete em ponto e via aqueles olhos grandes e famintos, o coração derretia-se-me.
— A minha mãe disse para eu vir jantar consigo… — dizia ele baixinho.
Era sempre assim: nunca um pedido direto da Dona Carla, sempre pelo filho. E eu cedia.
Uma noite, depois de o Tiago sair, sentei-me na varanda com uma chávena de chá e liguei à minha irmã em Setúbal.
— Teresa, tens de pôr limites! — disse ela logo ao ouvir a história toda. — Tu não és mãe dele! E se amanhã ela deixar de aparecer? Vais ficar com o menino para sempre?
Ri-me nervosamente.
— Não sejas exagerada…
— Exagerada? Olha que há histórias piores! — insistiu ela. — Fala com ela. Diz-lhe que não podes continuar assim.
Passei a noite em claro, ensaiando mentalmente conversas que nunca aconteciam.
No sábado seguinte, fui surpreendida por um telefonema da escola do Tiago.
— Boa tarde, fala da Escola Básica do Bairro Alto. É a Dona Teresa? Somos da lista de contactos de emergência do Tiago…
O coração disparou.
— O que se passa?
— A mãe dele não atendeu e ele está com febre alta. Pode vir buscá-lo?
Fui a correr buscá-lo e passei o resto do dia ao lado dele no sofá, com compressas frias e desenhos animados na televisão. Quando Dona Carla chegou — já noite cerrada — parecia mais aliviada do que preocupada.
— Ai Teresa… Nem sei como lhe agradecer! Não sei o que faria sem si!
Desta vez não consegui sorrir.
— Dona Carla… Precisamos de conversar — disse-lhe finalmente.
Ela olhou-me surpreendida.
— Claro… O que se passa?
Sentei-me à mesa e respirei fundo.
— Eu gosto muito do Tiago e quero ajudá-la sempre que possível. Mas isto está a tornar-se demasiado para mim. Tenho os meus próprios problemas e preciso também do meu tempo…
Ela ficou calada durante uns segundos longos demais.
— Eu sei… Tem razão… Só que às vezes sinto-me tão sozinha… Não tenho ninguém…
As lágrimas começaram-lhe a escorrer pelo rosto e senti uma pontada de culpa. Mas mantive-me firme.
— Eu compreendo. Mas precisamos de encontrar outra solução. Talvez possa pedir ajuda à sua irmã ou procurar uma ama…
Ela assentiu devagarinho e prometeu tentar resolver as coisas.
Nos dias seguintes senti um misto de alívio e vazio. A casa voltou ao silêncio habitual e dei por mim a sentir falta do barulho do Tiago na cozinha. Mas também recuperei tempo para mim: voltei a ler antes de dormir, fui ao cinema sozinha pela primeira vez em anos.
Passado algum tempo, Dona Carla bateu-me à porta com um bolo caseiro nas mãos.
— Queria agradecer-lhe por tudo… E desculpar-me por ter abusado da sua boa vontade.
Abraçámo-nos ali mesmo no corredor. Não voltámos à rotina antiga — agora era só de vez em quando, quando realmente precisava.
Às vezes dou por mim a pensar: até onde deve ir a nossa generosidade? Como é que dizemos “basta” sem magoar quem precisa? Será possível ajudar sem nos perdermos pelo caminho?