O Peso do Espelho: A Luta de Mariana Contra os Padrões de Beleza
— Mariana, vais mesmo sair assim à rua? — A voz da minha mãe ecoou pelo corredor, carregada de uma preocupação que, para mim, sempre soou a censura.
Olhei-me ao espelho da entrada. O cabelo solto, rebelde, sem a habitual chapinha; a cara limpa, sem base nem rímel. Senti o peso do olhar dela nas minhas costas, como se cada imperfeição fosse uma afronta pessoal.
— Vou, mãe. Estou cansada de perder horas a tentar parecer outra pessoa — respondi, tentando manter a voz firme, mas sentindo o nó na garganta apertar.
Ela suspirou alto, cruzando os braços. — Não percebo esta mania. As raparigas hoje em dia… Não tens orgulho em ti? Não queres ser bonita?
Bonita. Aquela palavra sempre me perseguiu. Desde pequena, ouvi a minha mãe e as tias comentarem sobre quem era bonita e quem não era. Lembro-me do Natal em casa da minha avó, com as primas todas alinhadas para a foto de família. Eu era sempre a que precisava de “um jeitinho” — um batom, um penteado, um vestido mais justo. Cresci a acreditar que só seria amada se fosse bonita.
Mas agora, aos 27 anos, depois de anos a lutar contra dietas, cremes e comparações infinitas no Instagram, decidi que já não queria viver assim. Só que ninguém à minha volta parecia compreender.
O meu namorado, Rui, também não ajudava. Uma vez, durante um jantar com amigos, comentou em tom de brincadeira:
— A Mariana é gira, mas se fizesse mais exercício ainda ficava melhor.
Sorri amarelo na altura, mas por dentro senti-me esmagada. Como se nunca fosse suficiente.
Naquela manhã, ao sair de casa sem maquilhagem e com roupa confortável, senti-me livre e vulnerável ao mesmo tempo. No metro, reparei nos olhares — alguns curiosos, outros julgadores. Uma senhora idosa sorriu-me com ternura. Mas um grupo de raparigas cochichou e riu-se baixinho. Apertei o casaco contra o corpo e tentei ignorar.
No trabalho, a minha chefe, Dona Teresa, chamou-me ao gabinete.
— Mariana, está tudo bem contigo? Pareces… cansada — disse ela, olhando-me de cima a baixo.
Expliquei-lhe que estava bem, apenas queria sentir-me mais natural. Ela franziu o sobrolho.
— Sabes que aqui a imagem conta muito. Os clientes reparam em tudo.
Saí do gabinete com vontade de chorar. Era como se o mundo inteiro conspirasse para me lembrar que eu não era suficiente assim como sou.
À noite, sentei-me à mesa com os meus pais. O meu pai tentou aliviar o ambiente:
— Deixa lá a miúda em paz, Maria. Cada um sabe de si.
Mas a minha mãe não desistia.
— Não percebo esta moda de parecer desleixada. No meu tempo é que era… As mulheres tinham orgulho em si!
Levantei-me da mesa e fui para o quarto. Senti as lágrimas escorrerem pelo rosto. Peguei no telemóvel e abri o Instagram. Vi as fotos das influencers portuguesas: pele perfeita, sorrisos brancos, corpos tonificados. Senti inveja e raiva ao mesmo tempo.
Foi então que decidi escrever um texto e publicar nos stories:
“Hoje decidi ser eu mesma. Sem filtros nem maquilhagem. Estou cansada de tentar encaixar num padrão impossível. Quero sentir-me bonita como sou — com olheiras, cabelo despenteado e tudo o resto. Se alguém se sente como eu, saibam que não estão sozinhas.”
Em poucos minutos começaram a chegar mensagens. Algumas amigas apoiaram-me:
— És linda assim! Obrigada por partilhares isto.
Mas outras foram cruéis:
— Isso é só preguiça disfarçada de autoaceitação.
— Não te queixes depois se ninguém te ligar nenhuma.
Até recebi uma mensagem anónima: “Com esse aspeto nunca vais arranjar emprego melhor.”
Senti-me exposta e vulnerável como nunca antes. Mas também senti uma força nova dentro de mim — uma vontade de lutar por mim mesma e por todas as mulheres que vivem presas ao espelho.
No dia seguinte, fui trabalhar igual: cara lavada e cabelo solto. A Dona Teresa chamou-me novamente.
— Mariana, já te disse… Aqui temos uma imagem a manter.
Respirei fundo e respondi:
— Compreendo, mas acredito que posso ser profissional sem ter de esconder quem sou. Se isso for um problema… talvez este não seja o meu lugar.
Ela ficou surpreendida com a minha resposta. Não disse mais nada nesse dia.
À noite, o Rui veio ter comigo.
— Estás diferente… Não sei se gosto desta tua fase — disse ele, olhando-me com desconfiança.
— Talvez seja altura de perceberes se gostas mesmo de mim ou só da ideia que tens de mim — respondi-lhe.
Discutimos durante horas. Ele dizia que eu estava a exagerar; eu dizia que estava cansada de fingir ser alguém que não sou.
Acabámos por terminar naquela noite. Chorei muito — não só por ele, mas por tudo aquilo que estava a perder ao tentar ser fiel a mim mesma.
Os dias seguintes foram duros. A minha mãe continuava a pressionar-me; no trabalho sentia-me cada vez mais isolada; algumas amigas afastaram-se. Mas outras aproximaram-se — mulheres que também estavam cansadas dos padrões impossíveis.
Começámos a reunir-nos aos sábados num café em Lisboa para conversar sobre as nossas experiências. Partilhávamos histórias de dietas falhadas, cirurgias dolorosas e inseguranças profundas. Ríamos e chorávamos juntas.
Um dia, uma das raparigas — a Joana — disse:
— Sabes que és uma inspiração para nós? Se não tivesses tido coragem de falar disto publicamente, eu nunca teria tido coragem de vir aqui sem maquilhagem.
Senti um calor no peito. Pela primeira vez em muito tempo senti orgulho em mim mesma — não pelo meu aspeto, mas pela minha coragem.
Com o tempo comecei a sentir-me mais leve. Aprendi a gostar do meu reflexo no espelho — mesmo nos dias maus. A relação com a minha mãe melhorou devagarinho; ela começou a perceber que o amor não depende da aparência.
No trabalho acabei por mudar para uma empresa mais pequena onde valorizavam mais as pessoas do que as aparências. Fiz novas amizades e até comecei um novo namoro — com alguém que me ama exatamente como sou.
Hoje olho para trás e vejo todo o caminho percorrido: as lágrimas derramadas, as discussões familiares, os olhares julgadores na rua e no trabalho. Mas também vejo força e esperança nas pequenas vitórias diárias.
Pergunto-me muitas vezes: quantas mulheres continuam presas ao espelho todos os dias? Quantas vivem com medo de serem rejeitadas por mostrarem quem realmente são?
E vocês? Já sentiram este peso? O que fariam para se libertarem dele?