O Peso das Palavras: Quando o Amor se Mede em Quilos

— Marta, tu não achas que devias começar a cuidar mais de ti?

A frase caiu como um trovão no meio do silêncio da cozinha. O arroz fervia no tacho, o cheiro de cebola frita misturava-se ao aroma do detergente barato, e os miúdos gritavam na sala, a disputar o comando da televisão. Olhei para o Rui, o meu marido, com uma colher de pau na mão e o coração a bater descompassado.

— Como assim, Rui? — perguntei, tentando manter a voz firme, mas sentindo já as lágrimas a ameaçar.

Ele desviou o olhar, envergonhado, mas insistiu:

— Não leves a mal… Só acho que tens estado diferente. Engordaste um bocado desde que a Leonor nasceu. Eu sei que é difícil, mas…

Senti-me pequena. Tão pequena como nunca antes. O Rui sempre foi direto, mas nunca pensei ouvi-lo falar assim. Olhei para as minhas mãos gretadas, para a camisola manchada de papa de fruta, para o corpo que já não reconhecia ao espelho. O corpo que me deu dois filhos, noites sem dormir, e uma solidão que só as mães conhecem.

— Sabes o que é difícil, Rui? — respondi, com uma amargura que me surpreendeu. — Difícil é passar os dias sozinha com duas crianças enquanto tu trabalhas até tarde ou vais jogar futebol com os teus amigos. Difícil é não ter tempo para mim porque tudo gira à volta dos miúdos e da casa. Difícil é ouvir do homem com quem casei que já não sou suficiente.

Ele ficou calado. O arroz começou a pegar-se ao fundo do tacho. Os miúdos continuavam a gritar. E eu senti uma raiva surda a crescer dentro de mim.

— Não é isso que eu quis dizer… — murmurou ele, mas já era tarde.

Naquela noite, depois de deitar as crianças, sentei-me no sofá e chorei em silêncio. O Rui ficou na cozinha, fingindo arrumar a loiça. Entre nós, um abismo crescia — feito de palavras não ditas, de cansaço acumulado, de sonhos adiados.

No dia seguinte, acordei com os olhos inchados e uma decisão tomada. Não ia deixar aquilo passar. Quando o Rui chegou do trabalho, sentei-me à mesa com ele.

— Rui, precisamos de falar.

Ele assentiu, tenso.

— Eu sei que não estou igual ao que era quando nos conhecemos. Mas tu também não estás. Lembras-te de quando passávamos horas a conversar? Agora mal nos olhamos nos olhos. Eu sinto-me sozinha nesta casa. Sinto que sou só mãe e dona de casa — e tu és só o homem que chega tarde e repara no meu peso.

Ele tentou interromper-me, mas continuei:

— Não quero ser só isto. Não quero ser só a Marta que engordou depois dos filhos. Quero ser vista. Quero ser amada como sou agora — não como fui há cinco anos.

O Rui ficou calado durante muito tempo. Finalmente disse:

— Eu também me sinto perdido, Marta. Sinto falta de ti… de nós. Mas não sei como voltar atrás.

As palavras dele eram sinceras, mas soavam vazias. Porque eu também já não sabia como voltar atrás.

Os dias seguintes foram estranhos. O Rui começou a chegar mais cedo a casa, tentava ajudar com as crianças, mas havia sempre um silêncio desconfortável entre nós. À noite, cada um virava-se para o seu lado na cama. A intimidade desaparecera — substituída por uma distância fria e cortante.

Uma tarde, enquanto dava banho à Leonor e ao Tiago, ouvi-os rir juntos na sala. Por um momento, senti esperança. Talvez ainda houvesse salvação para nós. Mas depois ouvi o Rui ao telefone:

— Sim, mãe… A Marta anda muito sensível ultimamente… Não sei o que fazer…

Senti-me traída. Ele falava da minha dor como se fosse um capricho passageiro. Como se eu fosse apenas uma mulher difícil de agradar.

Naquela noite, confrontei-o:

— Falaste com a tua mãe sobre mim?

Ele hesitou:

— Falei… Preciso de desabafar também, Marta! Não és só tu que sofres!

A discussão explodiu como uma bomba antiga prestes a rebentar há anos:

— Pois não! Mas tu tens sempre alguém do teu lado! Eu estou sozinha! Nem tu me ouves!

— Achas que é fácil para mim? Trabalho horas sem fim para esta família! E quando chego a casa só ouço críticas!

— Críticas? Eu só queria sentir-me amada! Só queria ouvir um elogio! Só queria…

As palavras morreram-me na garganta. Sentei-me no chão da cozinha e chorei como uma criança perdida.

O Rui ajoelhou-se ao meu lado e abraçou-me pela primeira vez em semanas.

— Desculpa… — sussurrou ele. — Eu amo-te… Só não sei como mostrar isso agora.

Ficámos ali muito tempo em silêncio. Pela primeira vez em muito tempo, senti que talvez ainda houvesse esperança.

Mas as feridas estavam abertas demais para sarar de um dia para o outro. Começámos a ir juntos à psicóloga do centro de saúde da freguesia — uma senhora chamada Dona Teresa, paciente e direta como só as mulheres portuguesas sabem ser.

Nas sessões, falámos das nossas mágoas antigas: das expectativas irrealistas do casamento, das pressões familiares (a sogra sempre a criticar), das saudades da liberdade de antes dos filhos.

Houve lágrimas, acusações e silêncios pesados. Mas também houve momentos de ternura: um olhar cúmplice, uma mão apertada na outra.

A Dona Teresa disse-nos algo que nunca esquecerei:

— O amor não é estático. Ou cresce convosco ou morre devagarinho.

Hoje escrevo esta história sentada à mesa da cozinha onde tudo começou. O arroz está ao lume outra vez — mas agora o Rui está aqui ao meu lado, a cortar cebola e a rir-se dos disparates dos miúdos.

Ainda temos dias maus. Ainda há inseguranças e silêncios desconfortáveis. Mas estamos a tentar — juntos.

Às vezes pergunto-me: quantos casais se perdem por causa de palavras mal ditas? Quantas Martas há por aí a sentir-se invisíveis dentro das suas próprias casas?

E vocês? Já sentiram o peso das palavras daqueles que mais amam?