O Peso das Minhas Palavras: Confissões de Uma Filha Portuguesa
— Não aguento mais, mãe! — gritei, com a voz embargada, enquanto a loiça tilintava na bancada da cozinha. O cheiro do arroz queimado misturava-se ao fumo das discussões, e a minha mãe, Maria do Céu, olhava-me com olhos vermelhos, cansados de tantas noites mal dormidas. O meu pai, António, estava encostado à porta, braços cruzados, como se quisesse impedir que o mundo lá fora entrasse em nossa casa — ou talvez quisesse impedir-se a si próprio de sair.
— Filha, não te metas — murmurou ele, mas a sua voz já não tinha força. Eu sabia que, naquele momento, era eu quem tinha o poder de decidir o que aconteceria a seguir. Tinha dezassete anos, mas sentia-me com oitenta.
As discussões começaram quando perdi o ano na escola. O meu pai culpava a minha mãe por ser demasiado permissiva, a minha mãe culpava o meu pai por nunca estar presente. Eu era o campo de batalha, a trincheira onde ambos lançavam granadas de palavras amargas. Lembro-me de noites em que me encolhia na cama, a ouvir os gritos abafados pela parede fina do meu quarto. “Se não fosse por ti, já tinha ido embora!”, ouvi a minha mãe dizer uma vez. Não sabia se falava para mim ou para ele.
Naquele dia, tudo explodiu. O meu pai tinha chegado tarde, outra vez. A minha mãe estava exausta, com olheiras profundas, e eu sentia-me sufocada. Quando a discussão começou, já não consegui ficar calada. — Se é para viver assim, mais vale cada um ir para seu lado! — atirei, sem pensar. O silêncio que se seguiu foi mais doloroso do que qualquer grito.
A partir desse momento, as coisas mudaram. O meu pai começou a dormir no sofá. A minha mãe chorava baixinho na casa de banho. Eu fingia estudar, mas passava horas a olhar para o vazio, a pensar se tinha feito bem. Os meus amigos, como a Inês e o Rui, tentavam animar-me, mas eu sentia-me sozinha, como se tivesse sido eu a puxar o gatilho de uma arma invisível.
Os dias arrastaram-se. O meu pai arranjou um quarto num apartamento partilhado em Benfica. A minha mãe ficou comigo no nosso T2 em Odivelas. A casa parecia maior, mais fria. O cheiro do café de manhã já não era o mesmo. O silêncio tornou-se ensurdecedor.
— Achas que fizemos bem? — perguntou-me a minha mãe uma noite, enquanto lavava os pratos. — Não sei, mãe — respondi, com a voz trémula. — Mas não aguentava mais.
O meu pai ligava-me todos os domingos. Falávamos do Benfica, das notas, do tempo. Nunca falávamos do que realmente importava. Uma vez, perguntei-lhe se estava feliz. Ele ficou em silêncio e depois disse: — Às vezes, a felicidade é só não doer tanto.
Na escola, os professores notaram que eu estava diferente. A professora Teresa chamou-me ao gabinete. — Mariana, estás bem? — perguntou, com aquele olhar maternal que me fazia querer chorar. Contei-lhe tudo. Ela ouviu-me em silêncio e depois disse: — Não és responsável pelas escolhas dos teus pais. Mas eu sentia que era.
Os anos passaram. Entrei na faculdade de Letras em Lisboa. Fiz novos amigos, apaixonei-me por um colega de curso, o Miguel. Mas havia sempre uma sombra atrás de mim. Nos jantares de família, a tensão era palpável. O Natal tornou-se um campo minado: com quem ia passar? Quem ia ficar sozinho?
A minha mãe começou a sair mais, a rir-se outra vez. O meu pai arranjou uma namorada, a Dona Lurdes, que fazia bolos deliciosos e me tratava como uma filha. Mas eu sentia-me traidora cada vez que gostava dela.
Um dia, ao jantar, a minha mãe disse: — Sabes, filha, às vezes penso que devíamos ter tentado mais. — Eu também penso nisso, mãe — respondi, com lágrimas nos olhos. — Mas eu já não aguentava ver-vos assim.
O tempo foi curando algumas feridas, mas outras ficaram abertas. Quando fiz vinte e dois anos, decidi escrever esta confissão. Talvez para me libertar, talvez para pedir desculpa. Não sei se fui demasiado nova para decidir o destino da nossa família. Não sei se poderia ter feito diferente.
Às vezes pergunto-me: será que as palavras de uma filha podem mesmo destruir uma família? Ou será que só revelam o que já estava partido? E vocês, alguma vez sentiram o peso de uma decisão que mudou tudo?