O Peso das Minhas Palavras: A Confissão de Uma Filha Portuguesa
— Não aguento mais, mãe! — gritei, com a voz embargada, enquanto a loiça tilintava na cozinha e o cheiro do arroz queimado se misturava ao da tensão no ar. A minha mãe, Maria do Carmo, olhou-me com olhos vermelhos, cansados de noites mal dormidas e discussões sem fim. O meu pai, António, estava sentado à mesa, de braços cruzados, olhando para o vazio como se ali não estivesse. Tinha dezassete anos e sentia-me sufocada dentro daquela casa onde cada palavra era uma faca e cada silêncio, um abismo.
Lembro-me daquele dia como se fosse hoje. O relógio da parede marcava oito da noite, mas o tempo parecia parado desde que as discussões começaram a ser diárias. O meu irmão mais novo, o Tiago, escondia-se no quarto com os auscultadores nos ouvidos, tentando abafar os gritos que já faziam parte da nossa rotina. Eu, por outro lado, não conseguia fugir. Sentia-me responsável por tudo, como se fosse a única capaz de impedir que a nossa família se desmoronasse.
— Catarina, vai para o teu quarto — disse o meu pai, com aquela voz fria que eu já conhecia tão bem.
— Não! — respondi, sentindo as lágrimas a escorrerem-me pela cara. — Vocês não percebem que estão a destruir tudo? Que estão a destruir-nos?
A minha mãe começou a chorar baixinho. O meu pai levantou-se de rompante e saiu de casa, batendo com a porta com tanta força que os quadros tremeram na parede. Fiquei ali, parada no meio da cozinha, sem saber o que fazer. A minha mãe aproximou-se de mim e abraçou-me como se eu ainda fosse uma criança pequena. Senti o cheiro do seu perfume misturado com o sal das lágrimas.
Naquela noite, não dormi. Fiquei a olhar para o teto do meu quarto, ouvindo os passos do meu pai a entrar tarde em casa e o choro abafado da minha mãe no quarto ao lado. Perguntava-me onde é que tudo tinha começado a correr mal. Lembrava-me dos domingos em família no parque da cidade do Porto, dos piqueniques na praia de Matosinhos, das gargalhadas à mesa durante o jantar. Quando foi que tudo mudou?
Os meses seguintes foram um inferno. As discussões tornaram-se mais violentas, as palavras mais duras. O meu pai começou a chegar cada vez mais tarde a casa. A minha mãe fechava-se na casa de banho durante horas. Eu tentava ser forte pelo Tiago, mas sentia-me a desmoronar por dentro.
Uma noite, depois de mais uma discussão em que voaram pratos e insultos, sentei-me à mesa com os meus pais. O Tiago estava na casa dos avós. Olhei-os nos olhos e disse:
— Eu não aguento mais isto. Se vocês não conseguem viver juntos sem se magoarem, talvez seja melhor separarem-se.
O silêncio que se seguiu foi ensurdecedor. A minha mãe olhou para mim como se eu tivesse acabado de trair tudo o que ela acreditava. O meu pai levantou-se sem dizer uma palavra e saiu de casa outra vez.
Na manhã seguinte, encontrei a minha mãe sentada à mesa da cozinha, com uma carta na mão. O meu pai tinha ido embora durante a noite. A minha mãe chorava baixinho enquanto lia as palavras escritas à pressa: “Desculpa. Não consigo mais.” Senti um nó na garganta tão apertado que quase não conseguia respirar.
Os dias seguintes foram um borrão de lágrimas, advogados e caixas de cartão. O Tiago não me falava. A minha mãe andava como um fantasma pela casa. Eu sentia-me culpada por tudo. Fui eu quem disse aquelas palavras. Fui eu quem sugeriu o divórcio.
Durante meses, tentei convencer-me de que tinha feito o certo. Que era melhor assim do que viver naquele inferno diário. Mas cada vez que via o Tiago calado ao canto da sala ou a minha mãe a olhar para as fotografias antigas, sentia uma dor insuportável no peito.
A vida mudou radicalmente depois disso. O meu pai foi viver para um apartamento pequeno em Gaia. Víamos-nos aos fins de semana, mas nunca era igual. As conversas eram forçadas, cheias de silêncios desconfortáveis. A minha mãe arranjou um trabalho extra para conseguir pagar as contas sozinha. Eu comecei a trabalhar numa pastelaria depois das aulas para ajudar em casa.
O Tiago tornou-se um estranho para mim. Deixou de falar comigo durante meses. Culpava-me pelo divórcio dos nossos pais e eu não conseguia tirar-lhe a razão. Eu própria me culpava todos os dias.
Houve uma noite em que cheguei a casa tarde do trabalho e encontrei a minha mãe sentada no sofá às escuras.
— Catarina… — começou ela, com a voz trémula — Achas que fizemos bem?
Sentei-me ao seu lado e abracei-a.
— Não sei, mãe… Só queria que tudo isto tivesse sido diferente.
Ela chorou nos meus braços como nunca antes tinha visto. Naquele momento percebi que não havia respostas certas ou erradas. Só havia dor.
Os anos passaram e cada um de nós tentou reconstruir a vida à sua maneira. O meu pai arranjou uma nova companheira, mas nunca mais foi o mesmo comigo ou com o Tiago. A minha mãe fechou-se ainda mais no trabalho e nas tarefas da casa. Eu tentei seguir em frente: entrei na universidade do Porto para estudar Psicologia, talvez numa tentativa inconsciente de perceber onde é que tudo tinha falhado.
Mas as feridas nunca sararam completamente. Cada Natal dividido entre duas casas era um lembrete do que tínhamos perdido. Cada fotografia antiga era uma punhalada no coração.
Um dia, já na universidade, tive uma discussão feia com o Tiago ao telefone.
— Tu destruíste a nossa família! — gritou ele antes de desligar na minha cara.
Fiquei horas a olhar para o telemóvel, incapaz de responder ou sequer de chorar.
Hoje tenho vinte e dois anos e continuo a perguntar-me se fiz o certo. Se fui demasiado egoísta ao querer paz para mim própria sem pensar nas consequências para os outros. Se poderia ter feito algo diferente para salvar a nossa família.
Às vezes olho para os meus pais — agora dois estranhos um para o outro — e pergunto-me: será que alguma vez foram felizes juntos? Ou será que eu só antecipei um fim inevitável?
E vocês? Acham que uma filha pode ser responsável pelo fim do casamento dos pais? Ou será que só fui um reflexo da dor deles? Gostava mesmo de saber…