O Peso das Comparações: A História de Ana e Ricardo
— Outra vez massa, Ana? — A voz do Ricardo ecoou pela cozinha, carregada de impaciência. — A Sofia fez ontem um bacalhau à Brás que até o João não parava de elogiar. Porque é que não tentas variar?
A colher tremeu-me na mão. O cheiro do refogado já não me apetecia. Senti o rosto a arder, mas engoli em seco antes de responder.
— Não tenho tempo para grandes invenções, Ricardo. Cheguei agora do trabalho, fui buscar a Leonor à escola, ainda tive de passar no supermercado…
Ele revirou os olhos e atirou-se para cima da cadeira, como se o peso do mundo lhe caísse nos ombros.
— Sempre desculpas. A Sofia também trabalha e olha o que faz pelo marido e pelos filhos.
A Sofia. Sempre a Sofia. Desde que o Ricardo começou a trabalhar com o João, parecia que ela tinha passado a morar connosco. O João elogia, a Sofia faz, a Sofia é…
A Leonor entrou na cozinha nesse momento, mochila às costas, cabelo desgrenhado.
— Mãe, posso ir brincar para casa da Matilde depois do jantar?
Olhei para ela e sorri, tentando disfarçar o nó na garganta.
— Claro, filha. Mas primeiro tens de fazer os trabalhos de casa.
Ela assentiu e saiu a correr. O Ricardo nem olhou para ela. Estava demasiado ocupado a comparar-me com uma mulher que eu mal conhecia.
Quando me sentei à mesa, o silêncio era cortante. O jantar decorreu entre garfadas apressadas e olhares de soslaio. No fim, Ricardo levantou-se sem uma palavra e foi para a sala ver televisão.
Fiquei ali sentada, sozinha, com os restos da massa fria no prato. Senti-me pequena, invisível. Lembrei-me dos tempos em que ele me surpreendia com flores ou me fazia rir com piadas parvas. Agora, tudo era cobrança.
Naquela noite, depois de deitar a Leonor, fui ter com ele à sala.
— Ricardo, podemos falar?
Ele não desviou os olhos do televisor.
— O que foi agora?
Sentei-me ao lado dele e respirei fundo.
— Sinto que já não te chego. Que tudo o que faço é pouco. Não sou a Sofia, nem quero ser. Tenho o meu trabalho, as minhas preocupações…
Ele suspirou, impaciente.
— Não é isso, Ana. Só queria que te esforçasses mais. Que fosses mais… presente.
— Presente? — A minha voz falhou. — Eu faço tudo por esta família! Trabalho todo o dia, trato da Leonor, da casa… Quando é que foi a última vez que me perguntaste como estou?
Ele ficou em silêncio. Pela primeira vez em meses, pareceu hesitar.
— Não sei… — murmurou.
— Pois… — Levantei-me e fui para o quarto. Fechei a porta devagarinho para não acordar a Leonor e deixei-me cair na cama. As lágrimas vieram sem aviso. Senti-me exausta, esgotada de tentar ser suficiente para alguém que só via as minhas falhas.
No dia seguinte acordei cedo. Preparei o pequeno-almoço em silêncio e deixei tudo pronto para a Leonor. Antes de sair para o trabalho, deixei um bilhete na mesa:
“Ricardo,
Preciso de espaço para respirar. Hoje vou jantar com a Marta depois do trabalho. Cuida da Leonor.
Ana”
No escritório, tentei concentrar-me nas tarefas mas as palavras dele martelavam-me na cabeça: “A Sofia também trabalha…” Fui ao WC lavar a cara e olhei-me ao espelho: olheiras fundas, cabelo preso à pressa, olhos tristes. Quando foi que me perdi assim?
À hora de almoço liguei à Marta.
— Preciso mesmo de conversar — disse-lhe, quase a chorar.
Ela não hesitou.
— Encontramo-nos no sítio do costume às sete?
Assenti e desliguei. O resto do dia passou arrastado. Quando finalmente me sentei à mesa com a Marta, desabei.
— Sinto que estou a falhar em tudo — confessei-lhe. — No trabalho sou só mais uma; em casa nunca sou suficiente; o Ricardo só sabe comparar-me à Sofia…
A Marta apertou-me a mão.
— Ana, tu és incrível. Tens uma filha maravilhosa, trabalhas imenso… O problema não és tu. O Ricardo é que não te valoriza.
Ficámos ali horas a conversar sobre tudo: os sonhos adiados, as rotinas sufocantes, os medos de falhar como mães e mulheres. Quando cheguei a casa já passava das dez. A Leonor dormia no quarto dela; o Ricardo estava sentado à mesa da cozinha com uma chávena de chá à frente.
Olhou para mim sem dizer nada durante uns segundos longos demais.
— A Leonor perguntou por ti — disse finalmente.
Sentei-me à frente dele.
— Preciso que percebas uma coisa: eu não sou a Sofia nem quero ser. Se não gostas de quem sou agora… talvez devêssemos repensar isto.
Ele ficou pálido.
— Estás a falar de separação?
Encolhi os ombros, sentindo um peso enorme no peito.
— Não sei… Só sei que não aguento mais viver assim.
O silêncio instalou-se entre nós como uma parede fria. Ele baixou os olhos para as mãos e ficou ali calado muito tempo.
Nos dias seguintes mal falámos. Cada um fechou-se no seu mundo: eu no trabalho e na Leonor; ele nos jogos de futebol e nos telejornais. Às vezes cruzávamo-nos no corredor como dois estranhos na mesma casa.
Uma noite ouvi um choro baixinho vindo do quarto da Leonor. Entrei devagarinho e encontrei-a encolhida na cama.
— O que se passa, filha?
Ela olhou para mim com olhos grandes e molhados.
— Vocês vão separar-se?
O coração apertou-se-me no peito.
— Não sei, querida… Mas seja o que for, vamos estar sempre aqui para ti.
Ela abraçou-se a mim com força e eu prometi a mim mesma que nunca mais ia deixar que as comparações dos outros me definissem.
No fim-de-semana seguinte sentei-me com o Ricardo à mesa da cozinha.
— Precisamos de ajuda — disse-lhe sem rodeios. — Ou tentamos resolver isto juntos ou cada um segue o seu caminho.
Ele olhou para mim com olhos cansados.
— Tens razão… Eu também já não aguento esta tensão.
Marcámos uma consulta de terapia de casal na semana seguinte. Não foi fácil: houve lágrimas, discussões antigas vieram ao de cima, mágoas guardadas durante anos. Mas pela primeira vez em muito tempo senti que estávamos a tentar — juntos — reconstruir alguma coisa.
Hoje olho para trás e vejo como é fácil perdermo-nos nas expectativas dos outros; como é cruel medir-nos por padrões alheios sem olhar para as batalhas invisíveis que cada um trava todos os dias dentro das suas quatro paredes.
Ainda cozinho massa muitas vezes — mas agora faço-o sem culpa. E quando o Ricardo me elogia pelo jantar simples ou pela forma como educo a Leonor, sinto que talvez ainda haja esperança para nós.
Às vezes pergunto-me: quantas mulheres vivem presas às comparações? Quantas famílias se destroem por dentro por causa das expectativas dos outros? E vocês? Já sentiram este peso?