O Peso da Bondade: Uma História de Seis Vidas Entrelaçadas

— Não podes continuar assim, Inês! — gritou a minha mãe da cozinha, enquanto eu tentava, mais uma vez, justificar o injustificável.

— Mas mãe, ele precisava de ajuda. O Miguel está a passar por uma fase difícil… — respondi, sentindo o nó na garganta apertar.

Ela largou o pano das mãos e veio ter comigo à sala. Os olhos dela, cansados de tantas noites mal dormidas por minha causa, fixaram-se nos meus. — E tu? Quando é que pensas em ti? Já viste o que tens perdido por seres sempre a boazinha?

Naquele momento, senti-me pequena. Tinha 27 anos e parecia que toda a minha vida girava em torno dos problemas dos outros. O Miguel era só mais um capítulo. Antes dele tinha sido a Joana, a minha melhor amiga desde os tempos do liceu, que me ligava a chorar sempre que o namorado lhe partia o coração. Depois veio o Rui, colega de trabalho, que se aproveitava da minha boa vontade para me deixar com as tarefas mais chatas do escritório.

Mas o caso do Miguel era diferente. Ele era meu primo e crescemos juntos em Braga. Sempre foi rebelde, mas eu via nele uma bondade escondida. Quando me pediu dinheiro emprestado pela terceira vez em dois meses, hesitei. Mas cedi. Sempre cedo.

— Inês, tu não és responsável pelos erros dos outros — insistiu a minha mãe.

— Eu sei… — menti.

Naquela noite não dormi. Fiquei a pensar em todas as vezes que pus os outros à frente de mim. Lembrei-me da Teresa, a vizinha do terceiro esquerdo, que me pedia para ficar com o filho enquanto ela ia trabalhar à noite no hospital. Lembrei-me do António, o meu ex-namorado, que me traía descaradamente e mesmo assim eu perdoava, porque ele dizia que precisava de mim.

No dia seguinte, acordei com uma mensagem da Joana: “Preciso falar contigo urgentemente.” O coração disparou. Vesti-me à pressa e fui ter com ela ao café da esquina.

— Inês, desculpa estar sempre a chatear-te… — começou ela, com os olhos vermelhos de tanto chorar.

— Não digas isso. Sabes que podes contar comigo para tudo — respondi automaticamente.

Ela contou-me que tinha perdido o emprego e não sabia como pagar a renda. Sem pensar duas vezes, ofereci-lhe ficar lá em casa até arranjar outra solução. A minha mãe olhou para mim como quem diz “outra vez?”, mas não disse nada.

Os dias passaram e a Joana instalou-se no sofá da sala. No início era só por uns dias, mas as semanas foram passando e ela não procurava trabalho. Comecei a sentir-me sufocada na minha própria casa. O Miguel continuava a pedir dinheiro e o Rui no trabalho já nem perguntava se podia passar-me tarefas — simplesmente deixava-as na minha secretária.

Uma noite, cheguei a casa exausta e encontrei a Joana a rir-se ao telefone enquanto comia o último pedaço de bolo que eu tinha guardado para mim. Senti uma raiva surda crescer dentro de mim.

— Joana, precisamos de conversar — disse-lhe, tentando controlar a voz.

Ela olhou para mim surpreendida. — O que foi?

— Não posso continuar assim. Sinto que estou sempre a dar e ninguém retribui…

Ela encolheu os ombros. — Pensei que eras minha amiga.

Aquela frase ficou-me atravessada na garganta. Era como se ser amiga significasse anular-me completamente.

No trabalho, a situação também piorava. Um dia, o Rui esqueceu-se de um relatório importante e culpou-me à frente do chefe. Fiquei sem palavras. O chefe olhou para mim com desconfiança e eu senti-me traída.

Nessa noite fui jantar com os meus pais. O meu pai, sempre mais calado, olhou para mim e disse:

— Inês, há pessoas que confundem bondade com fraqueza.

As palavras dele ecoaram na minha cabeça durante dias.

Foi então que conheci a Sofia. Ela entrou na empresa como nova colega do departamento financeiro. Era simpática mas assertiva. Um dia vi-a recusar educadamente um pedido do Rui para ficar com parte do trabalho dele.

— Não posso aceitar, Rui. Tenho as minhas próprias tarefas — disse ela sem hesitar.

Fiquei fascinada com aquela capacidade de dizer não sem sentir culpa.

Nessa tarde fomos almoçar juntas e contei-lhe um pouco da minha história.

— Sabes, Inês… ser boa pessoa não significa ser tapete dos outros — disse ela com um sorriso triste.

Comecei a pensar em tudo o que tinha perdido por nunca saber dizer não: oportunidades no trabalho, tempo para mim própria, até relações amorosas saudáveis.

Uma noite decidi confrontar o Miguel. Liguei-lhe e disse:

— Miguel, não posso continuar a emprestar-te dinheiro. Precisas de resolver os teus problemas sozinho.

Ele ficou furioso.

— És igual aos outros! Só pensas em ti! — gritou antes de desligar na minha cara.

Chorei durante horas depois daquela chamada. Senti-me egoísta pela primeira vez na vida.

Mas aos poucos comecei a perceber que estava apenas a proteger-me.

Com a Joana foi mais difícil. Ela ficou magoada quando lhe pedi para procurar outro sítio onde ficar.

— Pensei que éramos irmãs… — disse ela antes de sair com as malas na mão.

Fiquei sozinha no apartamento pela primeira vez em meses. Senti um alívio misturado com culpa.

No trabalho também comecei a impor limites ao Rui. Ele deixou de falar comigo durante semanas, mas aos poucos ganhou respeito por mim.

A Teresa do terceiro esquerdo arranjou outra vizinha para ficar com o filho à noite e deixou de me pedir favores constantemente.

Aos poucos fui recuperando o controlo da minha vida. Comecei a sair mais com colegas novos e até me inscrevi num curso de fotografia ao fim de semana.

Mas nem tudo foi fácil. A relação com o Miguel ficou fria durante meses até ele me ligar um dia para pedir desculpa. Disse-me que tinha arranjado trabalho numa oficina e estava finalmente a tentar mudar de vida.

A Joana também me mandou uma mensagem meses depois:

— Desculpa por ter abusado da tua amizade. Espero que estejas bem.

Respondi-lhe com carinho mas sem abrir portas para voltar ao passado.

Hoje olho para trás e percebo como é fácil perdermo-nos nos problemas dos outros quando esquecemos quem somos e o que precisamos realmente.

Às vezes pergunto-me: será possível ser verdadeiramente bondoso sem nos perdermos? Ou será que temos mesmo de aprender a dizer não para sobreviver neste mundo? E vocês? Já sentiram o peso da vossa própria bondade?