O Pequeno Herói de Vila Nova: A Coragem de Tiago

— Mãe, ele vai voltar? — sussurrou a Mariana, agarrada ao meu braço com tanta força que quase me cortava a circulação. Oiço o barulho dos passos pesados do António no corredor do prédio. O meu coração bate mais rápido do que nunca. Sinto o suor frio escorrer-me pelas costas. Os meus cinco filhos estão todos acordados, olhos arregalados, sentados no chão da sala. O Tiago, o mais novo, de três anos, abraça o seu urso de peluche já sem uma orelha. Tento não chorar. Não agora.

O António grita do lado de fora:
— Ana! Abre a porta! Sei que estás aí!

A minha voz treme quando respondo:
— Vai-te embora, António! Por favor… as crianças estão assustadas.

Ele bate com força. O som ecoa pelo prédio antigo de Vila Nova de Gaia. Os vizinhos devem ouvir, mas ninguém aparece. Já não é a primeira vez. Todos sabem, mas ninguém quer envolver-se. Sinto-me sozinha. Sinto-me presa.

O Miguel, o meu filho do meio, tenta ser corajoso:
— Mãe, eu protejo-te.

Sorrio-lhe, mas por dentro estou desfeita. Não devia ser ele a proteger-me. Devia ser eu a proteger todos eles.

O António continua a bater e a gritar insultos. Sei que está bêbado outra vez. Sei que se entrar, vai ser pior do que das outras vezes. Olho para o telemóvel na mão. Tremendo, ligo para a polícia.

— Polícia? Por favor, preciso de ajuda! O meu marido está à porta… está violento… tenho cinco filhos comigo… — a minha voz falha.

A senhora do outro lado pede-me calma e diz que vão enviar uma patrulha. Tento manter as crianças em silêncio. O António continua a ameaçar:
— Vais ver o que te acontece quando eu entrar!

De repente, silêncio. Oiço passos a afastarem-se. Será que foi embora? Ou está só à espera?

Passam minutos que parecem horas. O Tiago começa a chorar baixinho. Abraço-o com força.

— Vai ficar tudo bem, meu amor — minto-lhe.

Finalmente, ouço vozes no corredor. Dois polícias batem à porta:
— Senhora Ana? Polícia! Pode abrir?

Antes que eu me levante, o Tiago escapa-se dos meus braços e corre para a porta. Com as mãozinhas pequenas, destranca-a e abre-a devagarinho. Os polícias olham para ele surpreendidos.

— Olá campeão — diz um deles, baixando-se ao nível dele — Está tudo bem aqui?

O Tiago aponta para mim:
— A mamã está triste… o papá grita muito…

Sinto as lágrimas finalmente caírem. Os polícias entram e olham para nós: uma mãe desfeita, cinco crianças assustadas numa sala pequena e desarrumada.

— Senhora Ana, venha connosco — diz o outro polícia — Vamos ajudá-la.

Enquanto recolhemos algumas roupas à pressa, ouço um dos polícias falar pelo rádio:
— Precisamos de apoio social para uma mãe e cinco menores. Situação urgente.

Saímos do prédio em silêncio. O António já não está lá fora. No carro da polícia, as crianças encostam-se umas às outras. O Tiago senta-se ao meu colo e pergunta:
— Vamos para casa da avó?

Não sei responder-lhe. Não tenho família próxima. A minha mãe morreu há dois anos; o meu pai nunca aceitou o António e afastou-se de nós quando casei contra a vontade dele.

Chegamos à esquadra. Uma assistente social espera-nos com um sorriso triste.

— Olá Ana, sou a Teresa. Vamos tratar de tudo para ficarem em segurança esta noite.

A Teresa leva-nos para um abrigo temporário em Matosinhos. Um quarto pequeno com duas camas e um beliche. As crianças adormecem rapidamente, exaustas pelo medo e pelo cansaço.

Fico acordada a olhar para o teto. Como é que cheguei aqui? Lembro-me do dia em que conheci o António na festa da aldeia em Penafiel: era charmoso, fazia-me rir, prometeu-me o mundo. No início era tudo perfeito. Depois vieram os ciúmes, os gritos, os empurrões… até chegar às noites como esta.

No abrigo conheço outras mulheres com histórias parecidas. A Maria tem dois filhos pequenos e fugiu de Trás-os-Montes; a Joana está grávida e não sabe se vai conseguir criar o bebé sozinha.

Os dias passam devagar. As crianças começam a ir à escola local; eu procuro trabalho como empregada de limpeza ou numa padaria. O Tiago faz desenhos para mim todos os dias: casas coloridas com sol e árvores grandes.

Uma tarde, recebo uma chamada da polícia:
— Senhora Ana? O seu marido foi detido ontem à noite por agressão noutro local. Está sob custódia preventiva.

Sinto um alívio estranho misturado com medo do futuro. E agora? Como vou sustentar cinco filhos sozinha?

A Teresa ajuda-me a pedir apoio social e uma casa de transição em Vila do Conde. Mudamo-nos para lá um mês depois: um T2 pequeno mas só nosso. As crianças ajudam-me a pintar as paredes de branco; penduramos os desenhos do Tiago na cozinha.

O Miguel começa a jogar futebol no clube local; a Mariana faz amigas na escola nova; o Tiago aprende a dizer “obrigado” e “por favor” às senhoras da mercearia.

Mas nem tudo é fácil. Às vezes acordo com pesadelos; outras vezes choro sozinha na casa de banho para não preocupar os miúdos. Recebo cartas do tribunal sobre o processo contra o António; tenho medo do dia em que ele sair em liberdade.

Um dia, ao buscar os miúdos à escola, encontro o meu pai à porta do portão.
— Ana… — diz ele, hesitante — soube do que aconteceu… desculpa não ter estado presente…

Fico sem palavras. Ele abraça-me e chora comigo pela primeira vez em muitos anos.

Aos poucos reconstruímos laços perdidos pela vergonha e pelo orgulho ferido.

No Natal seguinte, estamos todos juntos à mesa: eu, os meus filhos e o meu pai. O Tiago sorri com os olhos brilhantes ao abrir um presente simples: um livro de histórias sobre heróis corajosos.

Olho para ele e penso: foi este menino pequenino quem teve coragem quando eu já não tinha forças.

Às vezes pergunto-me: quantas mães vivem presas ao medo sem saber como fugir? Quantos filhos pequenos são obrigados a crescer depressa demais? E se não fosse o Tiago naquela noite? Será que alguma vez teria tido coragem de pedir ajuda?

E vocês? Já viram coragem onde menos esperavam?