O Passado dos Outros, a Minha Ferida: Uma História de Perdão Inesperado
— Por favor, não me deixe aqui… — a voz dela era rouca, quase um sussurro, enquanto eu me ajoelhava ao seu lado na calçada molhada da Rua de São Bento. O cheiro de chuva misturado ao perfume barato dela ficou gravado na minha memória. Eu não sabia quem era aquela mulher, apenas vi o corpo frágil, o cabelo desgrenhado e os olhos cheios de medo.
— Está tudo bem, senhora, vou chamar uma ambulância — respondi, tentando soar calma, mas o meu coração batia descompassado. As pessoas passavam apressadas, desviando o olhar, como se a dor alheia fosse contagiosa. Peguei-lhe na mão, senti os dedos gelados, e ela apertou com força, como se eu fosse a sua última esperança.
Quando a ambulância chegou, acompanhei-a até ao hospital. Não sei explicar porquê, mas algo em mim não me deixou ir embora. Talvez fosse o olhar dela, ou talvez o vazio que eu sentia desde que a minha mãe, Teresa, se afundara numa tristeza sem nome há mais de vinte anos. Fiquei sentada na sala de espera, ouvindo o tic-tac do relógio, até que uma enfermeira me chamou.
— A senhora Maria está a perguntar por si. Quer vê-la?
Entrei no quarto. Ela sorriu, um sorriso cansado, e murmurou:
— Obrigada, menina… Como se chama?
— Inês. Inês Martins.
Ela estremeceu ao ouvir o meu apelido, mas não disse nada. Conversámos durante horas. Falou-me da solidão, do medo de envelhecer sozinha, das escolhas erradas. Senti pena, mas também uma estranha ligação. Quando me despedi, prometi voltar no dia seguinte.
Cheguei a casa tarde. A minha mãe estava sentada à mesa da cozinha, a olhar para o vazio, como sempre. O rádio tocava fado baixinho.
— Onde estiveste, Inês?
— Ajudar uma senhora que caiu na rua. Fui com ela ao hospital.
Ela não respondeu, mas vi um brilho estranho nos seus olhos. Fui dormir com o coração apertado, sem saber porquê.
Nos dias seguintes, visitei Maria todos os dias. Levei-lhe livros, flores, ouvi as suas histórias. Ela falava de um passado cheio de erros, de uma traição que nunca conseguiu perdoar a si própria. Um dia, enquanto lhe penteava o cabelo, ela olhou-me nos olhos e disse:
— Sabes, Inês, há coisas que fiz na vida de que me arrependo profundamente. Uma delas foi ter destruído uma família por inveja e rancor. Nunca consegui pedir perdão à mulher que magoei…
Senti um arrepio. O nome da minha mãe escapou-se-lhe num sussurro: Teresa Martins.
O mundo parou. O sangue gelou-me nas veias. Afastei-me dela, o pente caiu ao chão.
— O que disse? — perguntei, a voz trémula.
Ela chorou. Contou-me tudo: como tinha sido amante do meu pai, como espalhou mentiras sobre a minha mãe, como a nossa família se desfez por causa dela. O rosto dela era uma máscara de dor e remorso.
Saí do hospital sem olhar para trás. Caminhei durante horas pela cidade, a cabeça a latejar. Lembrei-me da minha mãe, dos anos de silêncio, das noites em que a ouvia chorar baixinho no quarto ao lado. Lembrei-me do meu pai, que nunca mais vi depois daquele verão fatídico.
Cheguei a casa e encarei a minha mãe.
— Mãe… conheces uma Maria? Maria Lopes?
Ela empalideceu. As mãos tremeram-lhe.
— Porquê? — perguntou, quase sem voz.
— Porque é ela. A mulher que ajudei na rua. A mulher que destruiu a nossa família.
O silêncio caiu entre nós como uma sentença. A minha mãe chorou como nunca a tinha visto chorar. Abracei-a, mas sentia-me vazia, traída pelo destino.
Durante dias, não consegui dormir. A raiva consumia-me. Queria gritar com Maria, queria vingar a minha mãe. Mas também me lembrava da mulher frágil no hospital, sozinha, arrependida.
Fui vê-la uma última vez. Entrei no quarto sem bater.
— Sabia quem eu era desde o início? — perguntei.
Ela assentiu, lágrimas nos olhos.
— Quis pedir-te perdão… mas não tive coragem.
— Não sou eu quem tem de perdoar — respondi, a voz dura. — É a minha mãe.
Ela chorou ainda mais. Senti pena e ódio ao mesmo tempo. Antes de sair, olhei para ela e disse:
— O passado não se apaga, mas talvez possamos escolher o que fazemos com ele.
Voltei para casa e contei tudo à minha mãe. Ela ouviu em silêncio. No fim, disse apenas:
— Não sei se consigo perdoar… mas talvez esteja na hora de tentar.
Os meses passaram. Maria morreu sozinha no hospital. Fui ao funeral. Não havia ninguém, só eu e o padre. Chorei por ela, por mim, pela minha mãe e pelo meu pai ausente.
Hoje olho para trás e pergunto-me: será que o perdão é mesmo possível? Ou será apenas uma forma de tentarmos viver com as feridas que nunca saram? O que vocês fariam se estivessem no meu lugar?