O Orgulho da Avó: Verdades por Trás das Cortinas da Nossa Casa

— Daniela, já puseste a mesa? — ouvi a voz da minha avó Maria ecoar pela casa, carregada daquele tom que misturava autoridade e impaciência. Era uma noite húmida de novembro em Lisboa, e o cheiro do bacalhau assado misturava-se com o aroma antigo dos móveis de madeira escura. Eu estava na cozinha, a tentar equilibrar os pratos, quando ouvi o tilintar do seu anel de ouro contra o tampo da mesa.

— Já vou, avó. — respondi, tentando esconder o cansaço na voz. Mas ela já estava atrás de mim, os olhos azuis fixos nos meus, como se procurasse uma falha.

— Não te esqueças dos copos de cristal. Hoje vem cá o tio António e quero tudo perfeito. — disse ela, ajeitando o xaile sobre os ombros magros.

O tio António era o filho predileto, o orgulho da família. Médico em Coimbra, vinha poucas vezes a Lisboa, mas quando vinha, a casa transformava-se num palco. A avó Maria fazia questão de mostrar que éramos uma família unida, feliz, exemplar. Mas eu sabia que por trás das cortinas pesadas e dos sorrisos forçados havia silêncios que gritavam mais alto do que qualquer palavra.

Enquanto punha os copos na mesa, ouvi a minha mãe sussurrar à minha tia Rosa na sala:

— A mãe hoje está impossível. Já viste como anda nervosa?

— É sempre assim quando o António vem. Parece que só ele conta para ela… — respondeu a tia Rosa, com um suspiro resignado.

Fingi não ouvir, mas aquelas palavras ficaram-me presas na garganta. Eu também sentia que não contava. Desde pequena que vivia à sombra do sucesso dos outros: do tio António, da prima Inês que era advogada, até do meu irmão Miguel que jogava futebol no clube local. Eu era só a Daniela — estudante de Letras, apaixonada por poesia e por tardes solitárias no Jardim da Estrela.

A campainha tocou e a avó Maria endireitou-se como se tivesse acabado de vestir uma armadura. Abriu a porta com um sorriso largo e teatral:

— António! Meu filho! Que saudades!

O tio entrou com o seu casaco caro e um ramo de flores para a avó. Cumprimentou-nos a todos com beijos apressados e sentou-se à mesa como se fosse o rei da casa. Durante o jantar, a avó não parava de falar das conquistas dele:

— O António é um exemplo para todos nós! Sempre tão trabalhador… E agora até foi convidado para dar uma palestra em Madrid!

Eu olhava para o meu prato, mexendo no bacalhau sem fome. O meu pai tentava mudar de assunto:

— Daniela ganhou um prémio de poesia na escola, mãe. Não queres ouvir o poema?

A avó sorriu, mas foi um sorriso vazio.

— Que bonito… Mas sabes como é, poesia não enche barriga. O importante é teres um emprego seguro, Daniela.

O silêncio caiu sobre a mesa como uma nuvem pesada. Senti os olhos do meu pai em mim, cheios de ternura e impotência. O tio António nem levantou os olhos do telemóvel.

Depois do jantar, enquanto todos se reuniam na sala para ver fotografias antigas, fui até à varanda respirar. O ar frio cortou-me a pele e as lágrimas vieram sem aviso. Senti-me invisível naquela casa cheia de memórias que não eram minhas.

De repente, ouvi passos atrás de mim. Era a avó Maria.

— Daniela… — disse ela, hesitante. — Porque estás aqui sozinha?

Limpei as lágrimas à pressa.

— Só precisava de ar.

Ela ficou ao meu lado em silêncio durante uns segundos. Depois falou, num tom mais baixo do que nunca lhe ouvira:

— Sabes… Quando eu era jovem, também gostava de escrever. Mas o meu pai dizia que isso era coisa de gente preguiçosa. Casei cedo, tive filhos… E nunca mais escrevi uma linha.

Olhei para ela surpreendida. Pela primeira vez vi fragilidade nos seus olhos.

— Porque nunca me contou isso?

Ela encolheu os ombros.

— O orgulho é uma coisa estranha, Daniela. Faz-nos esconder quem somos para parecermos fortes aos olhos dos outros… Eu sempre quis que vocês fossem felizes, mas talvez tenha confundido felicidade com sucesso.

Ficámos ali caladas durante um tempo. Depois ela pousou a mão sobre a minha.

— Não deixes que ninguém te faça sentir pequena pelo que amas fazer. Nem eu.

Naquela noite, vi a minha avó como nunca antes: não como a mulher dura e exigente que sempre conheci, mas como alguém que também teve sonhos e medos. Quando voltei para dentro, senti-me mais leve — mas também cheia de perguntas.

Será que algum dia vamos conseguir ver-nos uns aos outros para além das máscaras? Quantas verdades ficam escondidas atrás das cortinas das nossas casas?