O Orgulho da Avó: Verdades Entre Cortinas Fechadas

— Daniela, não te esqueças de fechar bem as cortinas. Não quero que os vizinhos vejam a confusão cá em casa! — A voz da minha avó, Dona Maria, ecoou pela sala, carregada de uma autoridade que me fazia estremecer desde criança.

Eu estava de costas para ela, a tentar esconder as lágrimas que teimavam em cair. O cheiro a sopa de legumes misturava-se com o perfume intenso de lavanda que ela usava há décadas. O relógio da parede marcava oito horas, mas o tempo parecia suspenso naquele fim de tarde de inverno.

— Avó, porque é que te preocupas tanto com o que os outros pensam? — perguntei, sem conseguir disfarçar o tremor na voz.

Ela pousou a colher com força na bancada. — Porque é assim que se vive nesta terra, Daniela! Aqui toda a gente fala, toda a gente repara. E eu não vou dar motivos para falarem de nós.

Suspirei. Desde pequena que sentia o peso desse orgulho. A minha mãe costumava dizer que Dona Maria era feita de ferro e silêncio. Cresci a ouvir histórias sobre como ela criara três filhos sozinha depois do avô ter morrido na fábrica. Era admirada por todos na aldeia, mas dentro de casa era outra pessoa: exigente, fria, incapaz de um abraço espontâneo.

Naquela noite, tudo parecia mais tenso do que nunca. O meu irmão mais novo, o Tiago, tinha acabado de chegar da escola com um olho negro. Disse que tinha caído nas escadas, mas eu sabia que era mentira. A avó olhou para ele com desconfiança.

— Não me mintas, rapaz. Quem te fez isso?

Tiago hesitou. — Foi o Rui e o Pedro… chamaram-me nomes e depois…

A avó interrompeu-o com um gesto brusco. — Não quero saber dessas confusões! Amanhã vais à escola como se nada fosse. Não dês parte fraca!

Olhei para ela, incrédula. — Avó, ele precisa de ajuda! Não vês que está magoado?

Ela virou-se para mim, os olhos duros como pedra. — Nesta casa não há espaço para fraquezas, Daniela. Foi assim que sobrevivi e é assim que vocês vão aprender.

O silêncio caiu pesado sobre nós. Senti uma raiva antiga a crescer dentro do peito. Sempre quis agradar-lhe, ser digna do seu orgulho, mas nunca era suficiente. As notas na escola, os prémios de piano, nada parecia quebrar aquela muralha.

Depois do jantar, enquanto lavava a loiça, ouvi-a falar ao telefone com a vizinha Rosa:

— Os meus netos são um orgulho! A Daniela é uma menina exemplar e o Tiago é um rapaz forte…

Sorri amargamente. Por detrás das cortinas fechadas, éramos apenas personagens num teatro montado para os outros verem.

Mais tarde, sentei-me no quarto com o Tiago. Ele chorava baixinho.

— Porque é que ela não gosta de nós? — perguntou-me.

Abracei-o com força. — Ela gosta à maneira dela… só não sabe mostrar.

Mas nem eu acreditava nisso.

Naquela noite não consegui dormir. Fiquei a pensar em tudo o que tínhamos perdido por causa do orgulho da avó: as festas de aniversário sem abraços, os natais silenciosos, as conversas interrompidas por medo do que os outros pudessem pensar.

De manhã, acordei decidida a confrontá-la. Encontrei-a na cozinha, a preparar o café.

— Avó, precisamos de falar.

Ela olhou-me com desconfiança. — O que foi agora?

— Não podemos continuar assim. Fingimos ser uma família perfeita para os outros, mas cá dentro estamos todos partidos.

Ela ficou imóvel por um momento. Depois pousou a chávena e sentou-se à mesa.

— Achas que eu não sei disso? Achas que é fácil ser eu?

A sua voz tremeu pela primeira vez em muitos anos.

— Passei a vida inteira a lutar para vos dar um nome limpo nesta terra. O teu avô morreu novo e eu fiquei sozinha com três filhos pequenos e uma casa cheia de dívidas. Se não fosse dura, não tinha sobrevivido… nem vocês.

Senti um nó na garganta. Pela primeira vez vi lágrimas nos olhos dela.

— Mas avó… nós só queríamos sentir-nos amados. Não precisamos de ser perfeitos para os outros.

Ela baixou o olhar.

— Eu sei… mas já não sei ser de outra maneira.

O Tiago entrou na cozinha nesse momento e ficou parado à porta, sem saber se devia aproximar-se.

A avó olhou para ele e fez-lhe sinal para se sentar ao seu lado. Pela primeira vez em muitos anos, vi-a passar-lhe a mão pelo cabelo.

— Desculpa se às vezes sou dura demais…

O Tiago sorriu timidamente e eu senti uma esperança tímida nascer dentro de mim.

Nesse dia percebi que por trás do orgulho da minha avó havia uma solidão imensa e um medo terrível de perder tudo aquilo por que lutara. Talvez nunca conseguíssemos mudar completamente, mas demos o primeiro passo para nos vermos uns aos outros como realmente somos — com falhas, medos e sonhos por cumprir.

Às vezes pergunto-me: quantas famílias vivem presas atrás das suas próprias cortinas fechadas? E será que algum dia teremos coragem de abrir as janelas e mostrar quem realmente somos?