O Orgulho da Avó Maria: Entre a Vaidade e a Solidão
— Não digas disparates, Leonor! O teu primo é o melhor aluno da escola, e sabes quem lhe ensinou a ler? Fui eu! — A voz da minha avó Maria ecoava pela cozinha, misturando-se com o cheiro intenso do bacalhau a assar. Eu, sentada à mesa, olhava para ela com uma mistura de incredulidade e resignação. Sabia que aquela conversa era só mais uma das suas histórias inflacionadas, mas ninguém ali parecia disposto a contrariá-la. O meu pai revirava os olhos em silêncio, a minha mãe mordia o lábio para não responder, e eu sentia aquela familiar pontada de desconforto no peito.
Desde pequena, aprendi que Dona Maria era rainha do seu próprio mundo. Na aldeia de Trancoso, todos a conheciam como a melhor anfitriã, a cozinheira imbatível e a mulher mais trabalhadora do bairro. Mas eu sabia que por trás daquele orgulho todo havia uma solidão teimosa, uma necessidade quase desesperada de ser admirada. O problema é que essa necessidade sufocava quem estava à volta.
Lembro-me bem do Natal em que tudo mudou. Tinha dezasseis anos e estava cansada das comparações constantes com o meu primo Rui. Ele era o neto perfeito — pelo menos nas histórias da avó — mas na verdade só vinha à aldeia uma vez por ano. Eu, que vivia ali ao lado, era invisível. Naquela noite, depois de mais uma das suas tiradas, não aguentei:
— Avó, se o Rui é assim tão especial, porque é que nunca está cá? Porque é que só aparece quando há presentes?
O silêncio caiu pesado sobre a sala. A avó ficou vermelha, os olhos brilhando de raiva e humilhação. O meu pai levantou-se abruptamente:
— Leonor! Pede desculpa à tua avó!
Mas eu não pedi. Saí porta fora, sentindo o frio da noite misturar-se com as lágrimas quentes que me escorriam pelo rosto. Caminhei até ao velho poço atrás da casa e sentei-me ali, abraçando os joelhos. Senti-me injustiçada, mas também culpada por ter magoado aquela mulher que, apesar de tudo, era minha avó.
No dia seguinte, ela fingiu que nada se tinha passado. Serviu o pequeno-almoço com um sorriso forçado e continuou as suas histórias: “Quando era jovem, trabalhava no campo do nascer ao pôr-do-sol! Ninguém fazia pão como eu!”
A verdade é que Dona Maria nunca foi fácil. Casou cedo com o meu avô Joaquim, um homem calado e resignado, que passava os dias na taberna e as noites a ouvir as lamúrias da mulher. Tiveram três filhos: o meu pai, a tia Rosa e o tio António. Cada um fugiu para longe assim que pôde. O meu pai ficou mais perto por obrigação — alguém tinha de cuidar dela quando o avô morreu.
Cresci entre esses silêncios pesados e as festas forçadas em família. A avó fazia questão de organizar tudo: desde o arroz-doce até à decoração da mesa. Mas bastava um deslize — um prato partido ou um comentário fora do lugar — para ela transformar tudo num drama.
— Ninguém valoriza o que faço! — gritava ela, lágrimas nos olhos. — Se não fosse eu, esta família já tinha acabado!
A minha mãe tentava apaziguar:
— Maria, todos te agradecemos…
Mas ela interrompia:
— Agradecem? Não parece! Só sabem criticar!
O tempo foi passando e eu fui aprendendo a calar-me. Passei a evitar os almoços de domingo e as festas de aniversário. O meu pai dizia sempre:
— A tua avó é assim porque teve uma vida difícil…
Mas será que isso justificava tudo? Será que o sofrimento passado lhe dava o direito de magoar os outros?
Quando entrei na universidade no Porto, afastei-me ainda mais. Só voltava à aldeia nos feriados e mesmo assim evitava ficar muito tempo em casa da avó. Sentia-me livre na cidade, longe daquele ambiente sufocante.
Até que um dia recebi uma chamada do meu pai:
— Leonor… a avó caiu. Está no hospital.
Voltei à pressa para Trancoso. Encontrei-a deitada numa cama branca, mais pequena do que nunca. Os olhos estavam fechados, mas ainda assim parecia altiva.
— Olha quem veio… — murmurou quando me viu. — Agora já te lembras da tua avó?
Senti uma raiva antiga a crescer dentro de mim:
— Vim porque me preocupo consigo. Mesmo quando faz de conta que eu não existo.
Ela virou o rosto para a janela:
— Não sabes o que é estar sozinha nesta vida…
Ficámos em silêncio durante longos minutos. Depois ela começou a falar, num tom mais baixo do que nunca:
— Sabes… quando era pequena, a minha mãe também nunca me elogiava. Dizia sempre que eu podia fazer melhor… Talvez por isso eu queira tanto ser reconhecida.
Pela primeira vez vi fragilidade naquela mulher tão orgulhosa. Senti pena dela — mas também percebi que não podia continuar a viver à sombra do seu orgulho.
Nos meses seguintes ajudei-a na recuperação. Levava-lhe livros, conversávamos sobre tudo menos sobre família. Aos poucos fui percebendo que Dona Maria não sabia amar de outra forma senão através das suas histórias exageradas e do seu desejo de ser admirada.
Um dia perguntei-lhe:
— Avó… alguma vez se sentiu realmente feliz?
Ela sorriu tristemente:
— Felicidade? Talvez quando vocês eram pequenos… Mas depois cada um foi à sua vida.
Nesse momento percebi que todo aquele orgulho era só uma máscara para esconder a solidão.
Hoje Dona Maria já não está cá. A casa dela ficou vazia e as festas de família nunca mais foram as mesmas. Às vezes dou por mim a lembrar das suas histórias — algumas verdadeiras, outras inventadas — e pergunto-me se não teria sido melhor tentar compreendê-la antes.
Será que somos todos um pouco como ela? Será que também usamos o orgulho para esconder as nossas feridas? E vocês… já tentaram olhar para além das máscaras dos vossos familiares?