O Nosso Filho Arrendou a Nossa Casa Sem Avisar: Agora Vivemos Numa Cabana e Lutamos Para Sobreviver

— Mãe, não te zangues, mas preciso de te contar uma coisa — disse o João, com a voz trémula, parado à porta da cozinha. O cheiro do café queimado misturava-se com o frio húmido daquela manhã de novembro. Eu já sabia, pelo tom dele, que vinha aí problema.

— O que foi agora, João? — perguntei, tentando manter a calma, mas sentindo o coração acelerar.

Ele olhou para o chão, encolhendo os ombros como fazia quando era pequeno e partia alguma coisa. — Eu… eu arrendei a casa. A nossa casa. Só por uns meses. Precisava de dinheiro para pagar umas dívidas.

Por um momento, o mundo parou. Senti o sangue fugir-me do rosto. O António, meu marido, largou o jornal e ficou a olhar para o João como se não o reconhecesse. — Fizeste o quê? — perguntou, com aquela voz baixa que eu sabia ser pior do que gritar.

O João começou a explicar-se, mas eu já não ouvia. A casa onde vivi toda a minha vida adulta, onde criei os meus filhos, onde plantei as minhas roseiras… agora era de estranhos? Senti-me traída, impotente. Como é que ele pôde fazer isto sem nos consultar?

A verdade é que nunca fomos uma família perfeita. Casámo-nos cedo, aos vinte e quatro anos, porque eu engravidei logo depois da licenciatura em Educação Básica. Os nossos pais não tinham posses para nos ajudar; começámos do zero. Trabalhei até ao último dia da gravidez e voltei logo ao trabalho, sem direito a licença de maternidade. O António dava aulas numa escola longe de casa e passava semanas fora. O João cresceu entre avós e vizinhos, sempre a correr de um lado para o outro.

Talvez tenha sido esse início atribulado que nos afastou. Ou talvez tenha sido o cansaço constante, as contas por pagar, as discussões sobre dinheiro e responsabilidades. O João sempre foi rebelde, mas nunca pensei que chegasse a este ponto.

— E agora? Para onde vamos? — perguntei, sentindo as lágrimas a ameaçarem cair.

O João encolheu-se ainda mais. — Arranjei-vos uma solução temporária. Uma cabana no terreno do tio Manel, lá em cima na serra. Não é grande coisa, mas pelo menos não pagam renda.

O António levantou-se devagar, como se cada movimento lhe doesse. — Vamos ver essa cabana — disse apenas.

No caminho até à serra, ninguém falou. O silêncio era pesado, cheio de acusações não ditas e mágoas antigas. Quando chegámos à cabana, percebi logo que ia ser difícil. Era pequena, húmida e cheirava a mofo. Não havia aquecimento central nem água quente; só uma lareira antiga e um fogão a lenha.

Na primeira noite ali, ouvi o António chorar baixinho na cama improvisada. Nunca o tinha visto assim. Senti-me culpada por tudo: por não ter sido uma mãe melhor, por não ter visto os sinais no João, por não ter conseguido proteger a nossa casa.

Os dias seguintes foram um teste à nossa resistência. O António tentou arranjar trabalho na vila mais próxima, mas ninguém precisava de professores naquela altura do ano. Eu comecei a fazer bolos para vender na feira semanal; era pouco, mas ajudava a comprar pão e leite.

O João vinha visitar-nos de vez em quando, sempre com desculpas novas para justificar o que tinha feito. — Eu só queria ajudar… pensei que conseguia resolver tudo antes de vocês saberem — dizia ele, mas eu via nos olhos dele o peso da culpa.

As discussões tornaram-se frequentes. O António culpava-me por ter sido demasiado permissiva com o João; eu acusava-o de nunca estar presente quando era preciso. Uma noite, depois de uma discussão mais acesa, saí para o frio e sentei-me na varanda da cabana a olhar para as estrelas.

Foi aí que percebi que estávamos todos perdidos: eu, o António e até o João. Cada um à sua maneira tentava sobreviver num mundo que nunca nos facilitou nada.

A vida na cabana era dura. No inverno, acordávamos com gelo nas janelas e tínhamos de aquecer água no fogão para tomar banho. Às vezes faltava luz durante dias inteiros e tínhamos de jantar à luz das velas. Mas também havia momentos bons: as conversas à lareira, os passeios pela serra ao fim da tarde, o cheiro da terra molhada depois da chuva.

Com o tempo, comecei a aceitar aquela nova realidade. Aprendi a fazer pão em forno de lenha e até comecei uma pequena horta atrás da cabana. O António tornou-se mais calmo; passava horas a ler ou a escrever no seu caderno velho. O João continuava ausente, preso nas suas próprias confusões.

Um dia, apareceu à porta da cabana com os olhos vermelhos e um envelope na mão. — Mãe… pai… consegui arranjar dinheiro para vos devolver a casa — disse ele, quase sem voz.

O António olhou para mim e vi nos olhos dele uma mistura de alívio e tristeza. Eu abracei o João com força, mas sabia que nada voltaria a ser como antes.

Voltámos à nossa casa semanas depois. Tudo estava diferente: os móveis tinham sido mudados de sítio pelos inquilinos temporários; as minhas roseiras estavam secas; havia um vazio estranho em cada divisão.

A confiança entre nós ficou abalada para sempre. O João tentou reconstruir a relação connosco, mas havia sempre um muro invisível entre nós. O António nunca mais foi o mesmo; tornou-se mais fechado, mais distante.

Hoje olho para trás e pergunto-me: onde foi que errámos? Será que alguma vez conseguimos perdoar verdadeiramente quem amamos quando nos trai dessa forma? E vocês… já sentiram que perderam tudo por causa de quem mais amam?