O Nome do Neto: Entre o Passado e o Futuro de uma Família Portuguesa
— Não, Paulo. Já disse que não vou chamar o nosso filho de Sebastião! — A voz de Catarina ecoou pela cozinha, cortando o silêncio da manhã como uma faca afiada.
Fiquei parado, com a chávena de café a tremer-me na mão. O cheiro do café fresco misturava-se com a tensão no ar. Olhei para ela, tentando decifrar se era só teimosia ou algo mais profundo. O nome Sebastião não era apenas um nome. Era o nome do meu pai, falecido há dois anos, o homem que me ensinou tudo o que sei sobre dignidade e sacrifício. Desde pequeno que me diziam: “O teu pai é um homem de palavra.” E agora, com o nascimento do meu primeiro filho com Catarina, queria homenageá-lo.
— Catarina, por favor… — tentei manter a voz calma, mas sentia o nó na garganta — O meu pai…
Ela interrompeu-me, os olhos brilhando de frustração:
— O teu pai foi importante para ti, eu sei. Mas Sebastião? Parece nome de velho! Não quero que o nosso filho cresça a ser gozado na escola. Porque não Tomás? Ou Lucas? — Ela cruzou os braços, desafiadora.
Senti-me dividido entre dois mundos: o passado que me moldou e o futuro que queria construir com Catarina. O eco das palavras da minha mãe ainda ressoava na minha cabeça desde o jantar da noite anterior:
— Paulo, filho, seria tão bonito… O teu pai ficaria tão orgulhoso lá em cima.
A minha mãe nunca superou a morte do meu pai. Desde então, tornou-se mais frágil, agarrando-se às pequenas tradições como se fossem tábuas de salvação num mar revolto. E agora, a esperança de ver o nome Sebastião continuar era quase tudo o que lhe restava.
Mas Catarina não era como a minha ex-mulher, Inês. Inês aceitava as tradições sem questionar. Catarina era fogo e vento — imprevisível, apaixonada, moderna. Talvez tenha sido isso que me atraiu nela depois de anos de rotina e silêncio conjugal. Conhecemo-nos numa conferência em Lisboa; ela era dez anos mais nova, cheia de ideias e sonhos. Os meus amigos diziam que ela só estava comigo pelo conforto, mas eu via nela uma luz que me fazia sentir vivo outra vez.
Agora, essa luz ameaçava cegar-me.
— Catarina… — tentei outra vez — Não percebes? Não é só um nome. É uma ligação ao passado, à família…
Ela virou-se para mim, lágrimas nos olhos:
— E eu? Eu não sou família? O nosso filho não é só teu! Porque é que as tuas tradições têm sempre mais peso do que aquilo que eu quero?
O silêncio caiu pesado entre nós. Senti-me egoísta, mas também injustiçado. Porque é que ela não conseguia ceder? Porque é que tudo tinha de ser uma luta?
Naquela noite, fui visitar a minha mãe. Ela estava sentada na sala, a ver fotografias antigas do meu pai.
— Então, Paulo? Já decidiram o nome? — perguntou com esperança na voz.
Baixei os olhos.
— Ainda não, mãe. Catarina acha o nome Sebastião antiquado.
Vi a expressão dela mudar — dos olhos marejados à boca trémula.
— Eu sabia… — murmurou — Esses jovens de hoje não querem saber das raízes. O teu pai era um homem bom…
Senti-me esmagado pelo peso das expectativas dela e pela recusa de Catarina. Saí dali com o coração apertado.
Os dias seguintes foram um campo de batalha silencioso. Catarina evitava falar comigo sobre o assunto; eu evitava olhar para ela à mesa. Até os amigos começaram a notar.
— Então, já escolheram o nome do miúdo? — perguntou o Rui num jantar de sexta-feira.
Sorri amarelo:
— Ainda estamos a discutir.
Ele riu-se:
— Isso é normal! Eu e a Sofia quase nos separámos por causa do nome da Matilde.
Mas no nosso caso não era só um nome. Era tudo aquilo que vinha agarrado a ele: luto mal resolvido, tradições familiares, inseguranças sobre o futuro.
Uma noite, depois de mais uma discussão acesa, Catarina saiu de casa e foi dormir à casa da irmã. Fiquei sozinho na sala, rodeado pelo eco das nossas vozes e pelo silêncio ensurdecedor das paredes. Olhei para uma fotografia do meu pai na estante e perguntei-lhe em silêncio: “O que farias tu?”
No dia seguinte, decidi procurar ajuda fora da família. Falei com o Padre António da paróquia onde fui batizado.
— Paulo — disse ele com voz serena — às vezes honrar quem partiu é também saber deixar espaço para quem fica. O amor constrói-se no presente.
As palavras dele ficaram-me na cabeça durante dias. Será que estava tão preso ao passado que não conseguia ver o futuro?
Quando Catarina voltou para casa, estava exausta. Sentámo-nos no sofá em silêncio até ela falar:
— Eu não quero perder-te por causa disto… Mas também não quero sentir que não conto para nada nesta família.
Peguei-lhe na mão:
— E eu não quero perder-te a ti nem ao nosso filho. Talvez possamos encontrar um meio-termo… Que tal Sebastião como segundo nome?
Ela hesitou, mas vi nos olhos dela um brilho de compreensão.
— Pode ser… Mas prometes que nunca vais obrigar o nosso filho a ser alguém que ele não quer ser?
Assenti com lágrimas nos olhos. Pela primeira vez em semanas senti esperança.
Quando finalmente anunciámos à família o nome do nosso filho — Lucas Sebastião — houve lágrimas e sorrisos misturados. A minha mãe chorou baixinho, agradecida pelo gesto; Catarina abraçou-me com força, aliviada por termos encontrado paz.
Mas dentro de mim ficou a dúvida: será que fizemos bem? Será que ceder é sempre perder ou pode ser ganhar noutra medida?
Às vezes pergunto-me: quantas famílias se desentendem por coisas tão pequenas e tão grandes como um nome? E vocês, até onde iriam para honrar o passado sem perder o presente?