O Natal Que Rasgou a Minha Família: Entre Presentes e Feridas Antigas
— Não acredito que fizeste isto, mãe! — O grito do Tiago ecoou pela sala, abafando até o tilintar dos talheres na mesa de Natal. Senti o sangue gelar-me nas veias. A árvore brilhava, as luzes piscavam, mas tudo à minha volta parecia desmoronar-se.
O presente estava ali, pousado no colo da Inês, ainda meio embrulhado, com o laço vermelho pendurado. Era uma simples pulseira de prata, igual à que a mãe dela usava antes de morrer. Achei que seria um gesto bonito, uma forma de mostrar que ela fazia parte da família, que eu não queria apagar a memória da mãe dela. Mas Tiago viu aquilo como uma traição.
— Mariana, não percebes? — O meu marido, António, tentava manter a voz baixa, mas eu via-lhe a tensão nos olhos. — O Tiago sente-se posto de lado. Sempre sentiu.
Olhei para o meu filho. O rosto dele estava vermelho, os olhos marejados. Tinha-lhe dado um livro — ele adorava ler — mas agora percebia que talvez não tivesse sido suficiente. Talvez nunca fosse suficiente.
A Inês, sentada ao meu lado, apertava a pulseira com força. Não dizia nada, mas os olhos brilhavam-lhe de lágrimas contidas. O silêncio dela era mais pesado do que qualquer palavra.
— Não é justo! — Tiago atirou o livro para o chão. — Ela recebe sempre tudo! Eu sou só o filho da mãe divorciada!
Senti-me pequena, esmagada entre as expectativas de todos. O António olhou-me como quem pede desculpa por algo que não sabe como resolver. A minha mãe, sentada no canto da sala, abanava a cabeça em silêncio. O cheiro do bacalhau com natas misturava-se com a tensão no ar.
Lembrei-me do primeiro Natal depois do divórcio. Eu e o Tiago sozinhos, a tentar fingir que estava tudo bem. Depois veio o António, com a Inês pela mão — tão pequenina, tão assustada. Achei que conseguíamos ser uma família. Achei que bastava amor e paciência.
Mas há feridas que não se curam só com tempo.
— Tiago, filho… — tentei aproximar-me dele, mas ele afastou-se.
— Não me toques! — gritou ele. — Nunca vais perceber!
A Inês levantou-se devagar e saiu da sala sem dizer palavra. O António foi atrás dela. Fiquei ali, sozinha com o meu filho e com a minha mãe a olhar para mim como se eu tivesse falhado em tudo.
— Mariana… — começou ela, mas calei-a com um gesto.
Fui até à cozinha, lavei as mãos só para ter algo para fazer. Oiço os risos das famílias felizes na televisão da sala ao lado. Senti-me ridícula por ter acreditado que um presente podia unir-nos.
O Tiago entrou na cozinha de rompante.
— Porque é que ela tem direito a tudo? Porque é que nunca pensas em mim primeiro?
— Tiago… eu pensei…
— Não pensaste nada! — interrompeu-me ele. — Desde que casaste com o António, parece que só queres agradar à filha dele!
As palavras dele eram facas. Lembrei-me de todas as vezes em que tentei equilibrar os pratos: os fins-de-semana alternados, as festas de aniversário duplas, as reuniões na escola onde era sempre “a mãe da Inês” ou “a mãe do Tiago”, mas nunca só Mariana.
— Sabes quantas vezes chorei no quarto porque sentia que não era suficiente para ti? — perguntou ele, a voz embargada.
Sentei-me à mesa da cozinha e puxei-o para junto de mim.
— Filho… tu és tudo para mim. Mas a Inês também precisa de mim. Ela perdeu a mãe…
— E eu perdi-te a ti! — gritou ele.
As lágrimas caíram-lhe pelo rosto abaixo e eu abracei-o com força. Senti-o tremer nos meus braços como quando era pequeno e tinha medo do escuro.
— Desculpa… desculpa se te magoei…
Ele não respondeu. Ficámos ali abraçados durante minutos que pareceram horas.
Quando voltámos à sala, o António estava sentado no sofá com a Inês ao colo. Ela chorava baixinho e ele fazia-lhe festas no cabelo.
— Mariana… precisamos de falar — disse ele, sem me olhar nos olhos.
Sentei-me à frente deles. O Tiago ficou de pé ao meu lado.
— Isto não está a funcionar — começou o António. — Estamos todos a sofrer. A Inês sente-se deslocada, o Tiago sente-se esquecido… E tu estás sempre a tentar agradar a todos menos a ti própria.
Olhei para ele, para os meus filhos — porque sim, eram ambos meus filhos no coração — e senti-me perdida.
— O que é que sugeres? — perguntei num fio de voz.
— Talvez precisemos de ajuda — disse ele. — Uma terapia familiar… qualquer coisa. Não podemos continuar assim.
A minha mãe entrou na sala nesse momento e sentou-se ao meu lado. Pegou-me na mão sem dizer nada.
— Eu só queria um Natal feliz… — murmurei eu.
O silêncio caiu sobre nós como um manto pesado.
Naquela noite, depois de todos se recolherem aos quartos, fiquei sozinha na sala às escuras. Olhei para as luzes da árvore e pensei em tudo o que tinha perdido e em tudo o que ainda podia perder se não mudasse alguma coisa.
Lembrei-me do sorriso do Tiago quando era pequeno, das gargalhadas da Inês quando finalmente me chamou “mãe” pela primeira vez. Lembrei-me das noites em claro a pensar se estava a fazer tudo certo.
Será possível reconstruir uma família feita de pedaços partidos? Ou há feridas que nunca saram?
E vocês? Já sentiram que um gesto bem-intencionado acabou por magoar quem mais amam? Como se reconstroem laços quando tudo parece perdido?