O meu sogro que devora o nosso lar – até onde vai o amor à família?
— Outra vez, Mariana? Vais mesmo fazer esta cena por causa de uns iogurtes? — O tom do Rui, o meu marido, ecoou pela cozinha, misturando-se com o som abafado da porta do frigorífico a fechar.
Olhei para ele, sentindo o nó na garganta apertar ainda mais. Não era só pelos iogurtes. Era pelo pão que desaparecia misteriosamente, pelo fiambre que eu comprava para os lanches da nossa filha Leonor e que nunca chegava ao fim da semana. Era pelo cheiro constante de café acabado de fazer, mesmo quando eu não tinha tido tempo de tomar o pequeno-almoço. Era pelo Sr. António, o meu sogro, que todos os dias entrava em nossa casa como se fosse a dele, sem bater à porta, sem avisar, e se sentava à mesa como se nada fosse.
— Não é pelos iogurtes, Rui. É por tudo. Por não termos um momento só nosso, por não termos privacidade… — A minha voz tremeu. — Eu já nem sei se isto é a nossa casa ou a casa do teu pai.
O Rui suspirou e passou as mãos pelo cabelo. — O meu pai está sozinho desde que a mãe morreu. Ele sente-se bem aqui. Não percebes isso?
— Percebo, mas e nós? E a nossa família? — Senti as lágrimas a quererem saltar-me dos olhos. — Eu também preciso de me sentir bem na minha própria casa.
A Leonor entrou na cozinha nesse momento, com os olhos ainda meio fechados de sono. — Mãe, há leite para os cereais?
Fui ao frigorífico. Vazio. O leite tinha desaparecido outra vez.
— O avô bebeu tudo ontem à noite — murmurou ela, como se já fosse normal.
Senti uma onda de frustração e culpa ao mesmo tempo. Não queria que a minha filha crescesse a achar que era normal não ter espaço nem comida suficiente porque alguém da família precisava mais.
O Sr. António apareceu pouco depois, como sempre, com o seu passo arrastado e um sorriso largo.
— Bom dia, família! Já cheira a café?
O Rui levantou-se para cumprimentá-lo e eu forcei um sorriso. Por dentro, sentia-me a desmoronar.
Ao longo das semanas, tentei de tudo: esconder comida no fundo do armário, comprar menos coisas para ver se ele percebia a indireta, até sugeri ao Rui que falássemos com ele sobre arranjar um passatempo ou ir mais vezes ao centro de dia. Mas nada resultava.
Uma noite, depois de mais uma discussão acesa com o Rui — desta vez porque o Sr. António tinha convidado dois amigos para jantar em nossa casa sem avisar — sentei-me na varanda e chorei baixinho. Senti-me sozinha no meio da minha própria família.
No trabalho, comecei a chegar atrasada porque tinha de ir ao supermercado todos os dias. Os colegas perguntavam-me se estava tudo bem e eu respondia sempre que sim, mas a verdade é que já não sabia como lidar com aquela situação.
A minha mãe percebeu logo que algo não estava bem quando fui visitá-la num domingo à tarde.
— Mariana, tens olheiras até ao queixo. O que se passa?
Desabafei tudo. Pela primeira vez disse em voz alta aquilo que me atormentava há meses.
— Sinto que perdi o controlo da minha vida, mãe. Que já nem sei quem sou dentro da minha própria casa.
Ela apertou-me a mão e disse:
— Filha, amar a família não significa sacrificar-te até não sobrar nada de ti. Tens de falar com o Rui outra vez. E se for preciso, fala tu com o teu sogro.
Voltei para casa determinada a resolver as coisas. Esperei até a Leonor estar a dormir e sentei-me com o Rui na sala.
— Rui, isto não pode continuar assim. Eu amo-te e respeito o teu pai, mas preciso que tu também me respeites a mim e à nossa filha. Precisamos de limites.
Ele olhou para mim durante muito tempo antes de responder:
— Achas mesmo que é assim tão grave?
— Sim — respondi sem hesitar. — Estou a perder-me nisto tudo. E tenho medo de te perder também.
No dia seguinte, depois do jantar, chamei o Sr. António à sala.
— Sr. António… precisamos de conversar.
Ele olhou para mim com surpresa e um pouco de desconfiança.
— O que foi, Mariana?
Respirei fundo e tentei manter a voz firme:
— Eu gosto muito de tê-lo connosco, mas ultimamente tem sido difícil gerir tudo… A comida desaparece rápido demais, há dias em que nem temos leite para a Leonor… E às vezes precisamos de estar só os três.
Ele ficou calado durante uns segundos longos demais. Depois levantou-se devagar e disse:
— Não fazia ideia que estava a incomodar tanto assim… Só venho cá porque me sinto sozinho em casa desde que a Maria partiu…
Vi as lágrimas nos olhos dele e senti uma pontada de culpa misturada com alívio por finalmente ter dito o que sentia.
O Rui abraçou o pai e eu juntei-me aos dois. Chorámos juntos naquela sala pequena demais para tanto silêncio guardado durante tanto tempo.
Nos dias seguintes, as visitas do Sr. António tornaram-se menos frequentes. Ele começou a ir ao centro de dia duas vezes por semana e até fez novos amigos lá. A nossa casa voltou a ser só nossa durante algum tempo do dia — e isso bastou para eu voltar a respirar fundo sem sentir culpa.
Mas nunca mais olhei para ele da mesma forma. Vi nele não só o homem que invadia o nosso espaço, mas também alguém perdido no seu próprio vazio.
Hoje olho para trás e pergunto-me: será possível amar sem nos anularmos? Até onde vai o dever para com a família antes de nos perdermos de vez? E vocês… já sentiram que estavam a desaparecer dentro da vossa própria casa?