O Meu Sogro Está a Destruir a Nossa Casa… e a Nossa Paz

— Outra vez, Ana? Não podes fazer antes um arroz de pato? — A voz do meu sogro ecoou pela cozinha, enquanto eu tirava do forno o modesto empadão de carne que tinha conseguido preparar com o que restava na despensa. Olhei para ele, cansada, tentando disfarçar o desânimo.

— O arroz de pato demora muito, senhor Manuel. E hoje não tive tempo — respondi, forçando um sorriso. O Rui, meu marido, fingia ler o jornal na sala, mas eu sabia que ouvia cada palavra. Desde que o pai dele ficou viúvo, há seis meses, começou a aparecer cada vez mais em nossa casa. No início, achei que era só solidão. Agora, parecia quase uma invasão.

O Manuel não vinha só para conversar. Vinha para almoçar, jantar e lanchar. E comia como se não houvesse amanhã. No início, eu achava graça ao seu apetite e às histórias de infância no Alentejo. Mas agora, cada ida ao supermercado era uma dor de cabeça. O orçamento apertado não dava para alimentar três adultos todos os dias, ainda por cima com o Manuel a repetir sempre o prato.

— Ana, tens aí mais um bocadinho de pão? — perguntou ele, já com a boca cheia.

— Tenho, sim — respondi, tentando esconder a irritação. Levantei-me para ir buscar mais pão à cozinha. Quando abri o armário, vi que só restavam duas carcaças. Suspirei. Amanhã teria de ir ao supermercado outra vez.

Quando voltei à mesa, Rui já tinha pousado o jornal e olhava para mim com aquele ar de quem quer evitar problemas.

— Pai, não queres vir cá só ao fim de semana? Assim a Ana também descansa um bocadinho… — sugeriu ele, cauteloso.

O Manuel olhou para o filho como se lhe tivessem dado uma bofetada.

— Então agora já incomodo? Só porque venho ver o meu filho e a minha nora? — A voz dele tremeu ligeiramente. — Fico sozinho em casa a olhar para as paredes? É isso que querem?

Senti-me imediatamente culpada. Mas também furiosa. Não era justo! Eu trabalhava todo o dia num escritório de contabilidade em Almada, chegava a casa exausta e ainda tinha de cozinhar para três adultos — sendo que um deles parecia ter um buraco negro no estômago.

Naquela noite, depois do Manuel ir embora (levando consigo metade do bolo de laranja que eu tinha feito para o pequeno-almoço do dia seguinte), sentei-me no sofá e desatei a chorar. Rui sentou-se ao meu lado e tentou abraçar-me.

— Ana… ele está sozinho. Sabes como ficou depois da mãe morrer…

— Eu sei! Mas isto não pode continuar assim! Não temos dinheiro nem energia para isto! — gritei-lhe, surpreendendo-me com a minha própria voz.

Rui ficou calado. O silêncio entre nós era pesado como chumbo.

No dia seguinte, acordei cedo e fui ao supermercado antes do trabalho. Comprei o essencial: arroz, massa, ovos e um frango inteiro em promoção. Quando cheguei a casa ao fim do dia, lá estava o Manuel sentado à mesa da cozinha, já com um prato de sopa à frente.

— Vim mais cedo hoje — disse ele, sorridente. — Estava farto de estar sozinho.

Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. Fui para o quarto e fechei a porta. Liguei à minha irmã, Sofia.

— Não aguento mais! O pai do Rui está sempre cá! Come tudo! Não tenho vida! — desabafei.

— Já falaste com o Rui? — perguntou ela.

— Já… mas ele sente-se culpado. E eu também me sinto horrível por pensar assim!

Sofia suspirou do outro lado da linha.

— Tens de pôr limites, Ana. Ou vais acabar por te ressentir dele… e do Rui também.

Naquela noite, decidi que ia falar com o Manuel. Esperei até depois do jantar. Ele estava sentado na sala a ver televisão com o Rui.

— Senhor Manuel… posso falar consigo um bocadinho?

Ele olhou para mim desconfiado.

— Claro, Ana. Diz lá.

Sentei-me à frente dele e respirei fundo.

— Eu gosto muito de si… mas ultimamente tem sido difícil para mim gerir tudo isto. O trabalho, a casa… e as despesas aumentaram muito desde que começou a vir cá todos os dias.

Ele ficou calado durante uns segundos longos demais.

— Não sabia que era um peso tão grande… — murmurou ele finalmente.

Senti-me péssima. Mas continuei:

— Não é isso! Só queria pedir-lhe que talvez viesse cá menos vezes… ou então podíamos combinar dias certos para almoçar ou jantar juntos…

O Manuel levantou-se devagarinho e foi buscar o casaco.

— Não se preocupem mais comigo. Não volto a incomodar-vos — disse ele antes de sair porta fora.

Rui olhou para mim como se eu tivesse acabado de cometer um crime.

— Era preciso ser assim tão dura?

Passei a noite em claro. No dia seguinte, tentei ligar ao Manuel mas ele não atendeu. Liguei ao irmão do Rui, o Pedro, que vive no Porto.

— O pai está magoado — disse ele. — Mas também tens razão… Ele sempre foi assim: quando se sente rejeitado fecha-se no seu mundo.

Durante dias, Manuel não apareceu nem ligou. Rui andava calado comigo e eu sentia-me cada vez mais sozinha naquela casa enorme e fria.

Uma semana depois, recebi uma mensagem da vizinha do Manuel: “Ana, desculpe incomodar… mas reparei que o seu sogro não sai de casa há dias. Está tudo bem?”

O coração caiu-me aos pés. Fui imediatamente lá com o Rui. Encontrámo-lo sentado na sala escura, rodeado de pratos sujos e restos de comida espalhados pela mesa.

— Pai… — murmurou Rui, ajoelhando-se ao lado dele.

Manuel olhou para nós com os olhos vermelhos.

— Não queria ser um peso… Só queria companhia…

Sentei-me ao lado dele e abracei-o. Chorei ali mesmo, sem vergonha nenhuma.

A partir desse dia combinámos: Manuel vinha jantar connosco duas vezes por semana e almoçava aos domingos. Nos outros dias íamos nós lá levar-lhe comida ou simplesmente fazer-lhe companhia sem grandes banquetes nem festas gastronómicas.

A vida acalmou um pouco depois disso. Mas nunca mais fui a mesma pessoa ingénua que achava que amor familiar era só dar sem limites. Aprendi que amar também é saber dizer “basta” antes que tudo se desmorone à nossa volta.

Agora pergunto-me: quantos de nós já passámos por isto? Até onde vai o nosso dever para com a família? E quando é que cuidar dos outros deixa de ser amor e passa a ser sacrifício?