O Meu Pai à Porta: O Regresso de um Passado que Nunca Pedi

— Abre a porta, Mariana! Eu sei que estás aí! — A voz rouca do meu pai ecoou pelo corredor, tão familiar quanto distante, como um eco de uma infância que tentei esquecer.

Fiquei imóvel, a mão trémula sobre o trinco. O coração batia-me descompassado, como se quisesse saltar do peito. Vinte anos. Vinte anos sem uma carta, um telefonema, um sinal de vida. E agora estava ali, do outro lado da porta, a exigir entrar na minha casa — e na minha vida — como se nada tivesse acontecido.

— Mariana! — insistiu ele, mais alto. — Tenho direito a ver-te! Sou teu pai!

Respirei fundo, tentando controlar as lágrimas que ameaçavam cair. Lembrei-me da última vez que o vi: eu tinha dez anos, ele saiu com uma mala na mão e um olhar vazio. A minha mãe chorava baixinho na cozinha, enquanto eu me escondia atrás da porta, sem perceber bem o que estava a acontecer. Desde então, o silêncio tornou-se o nosso companheiro.

Abri a porta devagar. O homem à minha frente parecia mais pequeno do que nas minhas memórias. O cabelo grisalho, o rosto marcado por rugas e olheiras profundas. Mas os olhos eram os mesmos: castanhos escuros, intensos, cheios de algo que nunca consegui decifrar.

— O que queres? — perguntei, a voz fria apesar do tumulto interior.

Ele hesitou antes de responder:

— Preciso de falar contigo. Não é justo… és minha filha.

— Justo? — ri-me amargamente. — Achas justo teres desaparecido durante vinte anos? Achas justo teres deixado a mãe sozinha com tudo?

Ele baixou os olhos. Por um momento, pareceu envergonhado.

— Eu… não foi fácil para mim também. Tive os meus motivos.

— Motivos? — interrompi-o. — Nunca quiseste saber dos meus motivos. Das minhas dores. Das noites em que chorei porque não percebia porque é que o meu pai não me queria.

O silêncio instalou-se entre nós, pesado como chumbo. Ele olhou-me nos olhos e vi ali uma tristeza antiga, mas também algo mais: culpa.

— Mariana, deixa-me entrar. Só quero falar.

Contra todas as minhas defesas, afastei-me para o deixar passar. Ele entrou devagar, olhando em volta como se cada objeto da minha sala fosse uma peça de um puzzle perdido.

Sentámo-nos frente a frente. Ele mexia nervosamente nas mãos.

— A tua mãe… está bem?

— Está. Casou outra vez há dez anos. Está feliz — respondi seca.

Ele assentiu, como se já esperasse aquela resposta.

— E tu? Estás feliz?

A pergunta apanhou-me desprevenida. Fui apanhada entre a raiva e uma tristeza profunda.

— Não sei — confessei. — Tento ser. Mas há coisas que não se esquecem.

Ele suspirou.

— Sei que te magoei muito. Mas agora preciso de ti.

Olhei-o com incredulidade.

— Precisas de mim? Agora? Depois de tudo?

Ele baixou a cabeça.

— Estou doente, Mariana. Não tenho mais ninguém. A tua avó morreu há dois meses… e eu… — a voz falhou-lhe — eu não queria ir sem te ver uma última vez.

Senti um nó na garganta. Parte de mim queria expulsá-lo dali, gritar-lhe todas as mágoas guardadas durante anos. Mas outra parte… aquela parte pequena e frágil que ainda era filha dele… queria ouvir mais.

— Porque foste embora? — perguntei finalmente, quase num sussurro.

Ele olhou-me nos olhos e vi lágrimas a brilhar-lhe nas pestanas.

— Porque era cobarde. Porque não sabia lidar com os meus próprios demónios. Bebia demais… discutia com a tua mãe… achei que era melhor desaparecer do que destruir-vos ainda mais.

As palavras caíram entre nós como pedras no fundo de um poço. Senti raiva, mas também pena. E uma saudade inexplicável daquele pai que nunca tive.

O tempo pareceu parar enquanto ficávamos ali sentados, cada um perdido nos seus pensamentos e dores antigas.

De repente, ouvi a chave na porta: era o Miguel, o meu marido.

— Mariana? Quem é este senhor? — perguntou ele, desconfiado ao ver o estranho na sala.

Levantei-me rapidamente:

— Miguel… este é o meu pai.

O Miguel ficou em silêncio por uns segundos antes de se aproximar e cumprimentar o meu pai com um aperto de mão frio.

— Prazer — disse ele secamente.

O ambiente ficou ainda mais tenso. O Miguel olhou para mim como quem pede explicações silenciosas. Senti-me dividida entre dois mundos: o passado que regressava sem aviso e o presente que lutei tanto para construir.

O meu pai tentou sorrir:

— Só vim falar com a Mariana… não quero incomodar.

O Miguel assentiu, mas ficou ali parado, como se quisesse proteger-me de uma ameaça invisível.

Durante os dias seguintes, o meu pai apareceu mais vezes. Às vezes trazia flores ou bolos da pastelaria da esquina, outras vezes apenas silêncio e olhares tristes. Aos poucos foi contando histórias do seu passado: os erros, as perdas, as noites solitárias em quartos alugados nos subúrbios de Lisboa.

A minha mãe soube da visita dele através da vizinha e ligou-me furiosa:

— Não acredito que deixaste esse homem entrar na tua casa! Depois de tudo o que fez?

Tentei explicar-lhe:

— Mãe, ele está doente… não tem ninguém…

Ela chorou ao telefone:

— E tu? Quem te protegeu quando ele te deixou? Quem ficou contigo nas noites em que tinhas medo do escuro?

Senti-me esmagada pela culpa e pela dúvida. Estaria a trair a minha mãe ao dar uma segunda oportunidade ao meu pai? Ou estaria apenas a tentar curar uma ferida antiga?

Numa noite chuvosa, o meu pai apareceu à porta mais fraco do que nunca. Trazia exames médicos nas mãos e um olhar derrotado.

— Mariana… preciso de ajuda. Não consigo sozinho.

Levei-o ao hospital no dia seguinte. Os médicos confirmaram: cancro avançado no fígado. Pouco havia a fazer além de aliviar as dores e esperar pelo inevitável.

Durante semanas cuidei dele como nunca pensei ser capaz: dava-lhe banho, preparava-lhe comida, lia-lhe livros antigos enquanto ele adormecia no sofá da sala. O Miguel ajudava-me em silêncio, apesar das discussões frequentes sobre até onde devia ir aquela compaixão.

Uma noite, já perto do fim, o meu pai segurou-me a mão com força surpreendente:

— Desculpa… por tudo. Se puderes… perdoa-me.

Chorei baixinho enquanto lhe acariciava o cabelo grisalho:

— Não sei se consigo perdoar-te completamente… mas estou aqui agora.

Ele sorriu pela última vez antes de fechar os olhos para sempre.

No funeral estavam apenas meia dúzia de pessoas: eu, o Miguel e dois antigos colegas dele do bairro antigo. A minha mãe não apareceu. Senti-me estranhamente vazia e aliviada ao mesmo tempo.

Agora sento-me muitas vezes à janela a olhar para Lisboa iluminada à noite e pergunto-me: será possível perdoar verdadeiramente alguém que nos magoou tanto? Ou será que algumas feridas nunca cicatrizam completamente?