O Meu Marido Viajou em Primeira com a Mãe e Deixou-nos para Trás: Uma História Portuguesa de Família, Orgulho e Mudança

— Não podes estar a falar a sério, Ricardo! — sussurrei, tentando não acordar as crianças que dormiam encostadas às cadeiras do aeroporto da Portela. O relógio marcava cinco da manhã e o cansaço pesava-me nos ombros, mas o que realmente me esmagava era o bilhete na mão: classe económica.

Ricardo desviou o olhar, fingindo procurar algo na mala de mão. A mãe dele, Dona Lurdes, ajeitava o casaco de lã com um sorriso vitorioso. — Filha, não te importas, pois não? Eu preciso de mais espaço para as pernas, sabes como é esta idade… — disse ela, com aquele tom condescendente que sempre me fez sentir pequena.

Olhei para os meus filhos, Sofia e Tiago, ambos demasiado novos para perceberem a humilhação que se abatia sobre mim. O Ricardo limitou-se a encolher os ombros. — É só um voo, Mariana. Não faças um drama.

Mas não era só um voo. Era mais uma vez. Mais uma vez em que eu era posta de lado, em que as necessidades da mãe dele vinham antes das minhas, em que o meu lugar era sempre atrás. Senti uma raiva surda a crescer dentro de mim, misturada com vergonha. As pessoas à volta olhavam para nós, algumas com pena, outras com aquele olhar de julgamento silencioso.

Durante o embarque, Ricardo e Dona Lurdes desapareceram rapidamente pela fila prioritária. Fiquei sozinha com as crianças, tentando equilibrar malas, bonecos e mantas. Sofia choramingava porque queria ir ao colo do pai. Tiago perguntava porque é que a avó não vinha connosco. Eu limitei-me a sorrir e a dizer que íamos todos no mesmo avião, mas por dentro sentia-me a desmoronar.

No avião, enquanto tentava acalmar os miúdos e arrumar as nossas coisas no compartimento apertado, ouvi risos vindos da cortina que separava a primeira classe. O cheiro do café fresco e dos croissants quentes chegava até nós como uma provocação cruel. Olhei para as minhas mãos trémulas e perguntei-me: como é que cheguei aqui?

A viagem foi longa e desconfortável. Sofia acabou por adormecer no meu colo, mas Tiago chorou quase todo o tempo. Quando finalmente aterrámos no Porto Santo, Ricardo apareceu fresco e sorridente à saída do avião. — Então, correu tudo bem? — perguntou ele, como se nada fosse.

Não respondi. Senti um nó na garganta e uma vontade imensa de gritar. Mas calei-me. Como sempre.

No hotel, Dona Lurdes fez questão de escolher o melhor quarto para ela e para o filho. Fiquei com as crianças num quarto pequeno ao lado da lavandaria. À noite, ouvi-os rir na varanda enquanto eu tentava adormecer os miúdos entre lençóis húmidos e paredes finas.

No terceiro dia de férias, durante o pequeno-almoço, Dona Lurdes comentou alto: — Mariana, devias ter mais cuidado com o Tiago. Está sempre sujo! — O Ricardo riu-se. — Ela nunca teve muito jeito para estas coisas…

Senti as lágrimas a quererem saltar-me dos olhos. Levantei-me da mesa sem dizer palavra e fui até à praia sozinha. Sentei-me na areia fria e deixei-me chorar em silêncio. Lembrei-me da Mariana de há dez anos atrás: cheia de sonhos, apaixonada por Ricardo, convencida de que juntos iríamos construir uma família feliz.

Quando voltei ao hotel, encontrei Sofia a chorar porque queria ir brincar com o pai. Fui procurá-lo e encontrei-o na piscina com Dona Lurdes, ambos riam enquanto bebiam cocktails coloridos. — Mariana, podes ficar com as crianças mais um bocadinho? A mãe está cansada — disse ele sem sequer olhar para mim.

Nessa noite, depois de adormecer os miúdos, sentei-me na varanda do nosso quarto minúsculo e escrevi uma mensagem à minha irmã:

“Não aguento mais isto. Sinto-me invisível. Achas que estou a exagerar?”

A resposta dela chegou minutos depois:

“Não estás a exagerar. Mereces ser feliz. Fala com ele. Exige respeito!”

Na manhã seguinte, tomei coragem. Esperei até estarmos sozinhos no quarto dele.

— Ricardo, precisamos de falar.

Ele olhou para mim com impaciência.

— O que foi agora?

— Não posso continuar assim. Sinto-me humilhada cada vez que pões a tua mãe à minha frente. Cada vez que me deixas sozinha com as crianças enquanto tu te divertes… Eu também sou tua família!

Ele bufou.

— Mariana, estás sempre a reclamar! Nunca estás satisfeita! A minha mãe precisa de mim…

— E eu? E os teus filhos? Não precisamos?

— Tu és forte. Aguentas-te bem sozinha.

Essas palavras foram como uma facada no peito. Percebi ali que ele nunca iria mudar se eu não mudasse primeiro.

Nesse dia tomei uma decisão: ia deixar de ser espectadora da minha própria vida.

Comecei por pequenas coisas: recusei fazer todos os favores à Dona Lurdes; organizei passeios só com os meus filhos; comecei a responder quando me criticavam injustamente; procurei apoio junto da minha irmã e das poucas amigas que ainda tinha.

Quando voltámos a Lisboa, procurei um trabalho a tempo parcial numa livraria perto de casa. Pela primeira vez em anos senti-me útil fora do papel de mãe e esposa submissa.

Ricardo não gostou da mudança.

— Agora já nem tens tempo para os teus filhos! — atirou ele numa discussão acesa.

— Tenho tempo para eles sim — respondi firme — mas também preciso de tempo para mim.

As discussões tornaram-se frequentes. Dona Lurdes fazia questão de me lembrar que “uma mulher deve saber o seu lugar”.

Certa noite, depois de mais uma discussão em que Ricardo me acusou de ser egoísta por querer sair com amigas ao cinema, sentei-me na cama e olhei para ele:

— Sabes qual é o problema? É que nunca me viste como igual. Sempre fui só mais uma peça do teu conforto.

Ele ficou calado pela primeira vez em muito tempo.

Foi então que percebi: não precisava da aprovação dele nem da mãe dele para ser feliz.

Com o tempo fui ganhando confiança. Os meus filhos começaram a notar a diferença: viam-me sorrir mais vezes; já não chorava sozinha à noite; já não tinha medo de dizer “não”.

Um dia, depois de um jantar em casa da minha irmã onde ri como há muito não ria, percebi que estava finalmente a reencontrar-me.

Hoje olho para trás e vejo aquela Mariana perdida no aeroporto da Portela e sinto compaixão por ela — mas também orgulho pela mulher em que me tornei.

Às vezes pergunto-me: quantas mulheres continuam caladas por medo ou vergonha? Quantas Marianas existem por aí à espera de encontrar coragem?

E vocês? O que fariam se estivessem no meu lugar?