O meu marido foi-se embora, mas enganou-se – Recomeçar à sombra da traição
— Achas mesmo que vais conseguir sozinha, Mariana? — A voz do Rui ecoava pela cozinha, carregada de desprezo e cansaço. Os pratos ainda estavam por lavar, a sopa arrefecia na panela, e o relógio marcava quase meia-noite de uma sexta-feira que parecia não ter fim.
Olhei para ele, tentando encontrar no rosto do homem com quem partilhei dez anos de vida algum vestígio do amor que nos uniu. Mas só vi frustração e uma raiva surda, como se eu fosse a culpada por tudo o que lhe faltava. — Não sei, Rui. Mas prefiro tentar do que continuar assim — respondi, a voz a tremer mais de medo do que de coragem.
Ele riu-se, um riso curto e amargo. — Vais ver que não és nada sem mim. — Pegou nas chaves do carro e saiu, deixando atrás de si um silêncio pesado, cortado apenas pelo som do vento a bater nas janelas.
Fiquei ali, parada, com as mãos a tremer e o coração aos pulos. O meu mundo tinha acabado de ruir. O Rui era tudo: o pai da nossa filha Inês, o meu companheiro desde os tempos da faculdade em Coimbra, o homem por quem desafiei os meus pais quando disseram que ele não era para mim. E agora estava tudo acabado.
Naquela noite não dormi. Sentei-me no sofá da sala, rodeada pelas fotografias da nossa família — férias no Algarve, aniversários, a Inês no seu primeiro dia de escola — e chorei até não ter mais lágrimas. Senti-me pequena, inútil, como se ele tivesse razão: sem ele eu não era ninguém.
No sábado de manhã, a Inês acordou cedo. Tinha oito anos e olhos grandes como os meus. — A mãe está triste? — perguntou ela, abraçando-me com força.
— Estou só cansada, filha — menti, tentando sorrir. Não sabia como lhe explicar que o pai tinha ido embora. Não sabia como lhe explicar que talvez nunca mais voltasse.
Os dias seguintes foram um borrão de telefonemas não atendidos, mensagens curtas e frias do Rui — “Vou buscar as minhas coisas”, “Fica com a casa” — e olhares curiosos dos vizinhos. A minha mãe apareceu no domingo à tarde com um tupperware de arroz de pato e um sermão pronto.
— Eu avisei-te, Mariana. O Rui nunca foi homem para ti. Sempre com a cabeça no ar, sempre a fugir às responsabilidades… — disse ela, enquanto arrumava a cozinha como se pudesse pôr ordem na minha vida.
— Mãe, por favor… — pedi, mas ela continuou.
— Tens de ser forte pela Inês. Não podes desmoronar agora.
Eu sabia que ela tinha razão, mas sentia-me tão frágil como uma folha ao vento. No trabalho, no centro de saúde onde era enfermeira, os colegas cochichavam nos corredores. A Marta, minha amiga desde o estágio, tentou animar-me:
— Mariana, tu és das pessoas mais fortes que conheço. O Rui não te merece.
Mas eu só conseguia pensar no vazio da casa ao fim do dia, no silêncio do quarto onde antes adormecíamos juntos.
Uma semana depois, descobri a verdade: o Rui tinha outra mulher. Vi-os juntos à porta do café central da vila, ela loira e elegante, ele com um sorriso que já não me pertencia. Senti uma dor aguda no peito, como se me tivessem arrancado o ar.
Confrontei-o nessa noite. Liguei-lhe e esperei que atendesse.
— Já não há nada entre nós? — perguntei, a voz embargada.
— Não vale a pena fingir, Mariana. Estou apaixonado pela Vera. Quero seguir em frente.
Desliguei sem dizer mais nada. Pela primeira vez em semanas senti raiva em vez de tristeza. Como pôde ele trocar tudo o que construímos por uma aventura? Como pôde ele abandonar a filha?
Os meses seguintes foram duros. Tive de aprender a ser mãe e pai ao mesmo tempo. A Inês chorava à noite e perguntava pelo pai. Eu inventava desculpas: “O pai está a trabalhar muito”, “O pai precisa de tempo”. Mas ela sabia. As crianças sentem tudo.
A minha mãe insistia para eu voltar para casa dela em Aveiro. O meu irmão Pedro dizia para processar o Rui por pensão de alimentos. Eu só queria paz.
Comecei a correr ao fim do dia para esvaziar a cabeça. No início mal conseguia dar uma volta ao quarteirão sem ficar ofegante. Mas aos poucos fui ganhando fôlego e força. Correr tornou-se o meu refúgio: ali ninguém me julgava, ninguém me dizia que eu não era suficiente.
No trabalho fui promovida a chefe de equipa. A Marta fez-me uma festa surpresa no meu aniversário e percebi que tinha amigos verdadeiros ao meu lado.
Um dia, ao buscar a Inês à escola, encontrei o Rui à porta. Ele queria vê-la mais vezes. Olhou para mim com um ar cansado.
— Mariana… Eu errei contigo. Sei disso agora.
— Não sou eu que tens de convencer — respondi-lhe fria. — É a tua filha.
Ele tentou aproximar-se várias vezes nos meses seguintes. Mandava mensagens longas a pedir desculpa, dizia que sentia falta da família. Mas eu já não era a mesma mulher insegura que ele deixou para trás.
A Inês foi-se habituando à nova rotina: fins-de-semana com o pai e a Vera (que afinal era simpática), semanas comigo e com os avós maternos sempre por perto.
Um ano depois daquela noite fatídica, sentei-me sozinha na varanda com um copo de vinho tinto e olhei para as luzes da vila ao longe. Senti uma paz estranha dentro de mim. Sobrevivi ao abandono, à traição e à solidão. Descobri que sou mais forte do que alguma vez imaginei.
Hoje sei que recomeçar não é um fracasso; é uma oportunidade de nos encontrarmos a nós próprios quando tudo parece perdido.
Pergunto-me: quantas mulheres vivem na sombra do medo de ficarem sozinhas? Será que só somos alguém quando temos alguém ao nosso lado? Ou será que é na solidão que finalmente aprendemos quem somos?