O Meu Marido Esqueceu-se de Nós para Cuidar da Família do Irmão
— António, vais mesmo sair outra vez? — perguntei, a voz embargada, enquanto ele procurava as chaves do carro em cima da mesa da cozinha.
Ele nem olhou para mim. — A Marta ligou. O Tomás está com febre e ela não sabe o que fazer. Tenho de ir.
Olhei para os nossos filhos, sentados à mesa, os olhos fixos nos pratos quase intocados. A Leonor, de oito anos, mordia o lábio, tentando não chorar. O Diogo, mais novo, brincava com o garfo, alheio ao drama que se desenrolava à sua volta. Senti uma raiva surda crescer dentro de mim.
Desde o acidente do irmão do António, há seis meses, que a nossa vida tinha mudado radicalmente. O Luís era o irmão mais novo dele, sempre alegre, sempre disponível. Morreu numa noite chuvosa, numa estrada nacional perto de Santarém. Deixou a Marta viúva e dois miúdos pequenos. O António ficou devastado — mas eu nunca imaginei que o luto dele se transformasse nisto.
No início, compreendi. Todos compreendemos. A Marta estava perdida, os miúdos choravam pelo pai. O António era o único apoio deles. Mas os dias passaram e ele começou a passar cada vez mais tempo naquela casa. Ia buscá-los à escola, fazia compras, tratava das contas, até pintou o quarto das crianças. Aos poucos, foi-se afastando de nós.
— António, e nós? — arrisquei, baixinho. — Os teus filhos sentem a tua falta. Eu também.
Ele suspirou, cansado. — Não percebes? Eles perderam tudo. Só me têm a mim.
— E nós? — repeti, sentindo as lágrimas a ameaçarem cair. — Nós também te perdemos.
Ele saiu sem responder.
As noites tornaram-se longas e frias. Os miúdos perguntavam pelo pai e eu inventava desculpas: “O pai está a ajudar a tia Marta”, “O pai já volta”. Mas a verdade é que ele só vinha dormir e mesmo assim muitas vezes chegava tarde demais para lhes dar um beijo de boa noite.
Comecei a sentir-me invisível dentro da minha própria casa. Os meus pais diziam-me para ter paciência: “O António está a passar uma fase difícil”. A minha sogra ligava-me todos os dias para saber se ele estava bem — mas nunca perguntava por mim ou pelos netos.
Uma noite, depois de deitar as crianças, sentei-me no sofá e esperei por ele. Quando entrou, já passava da meia-noite.
— Precisamos de falar — disse-lhe.
Ele largou as chaves no móvel do corredor e olhou-me como se só então se apercebesse que eu existia.
— O que foi agora?
— Isto não pode continuar assim. Os teus filhos precisam de ti. Eu preciso de ti. Não podes viver duas vidas.
Ele passou as mãos pelo cabelo, exausto.
— Não percebes… Se eu não ajudar a Marta e os miúdos, quem ajuda? O Luís morreu! Eles não têm ninguém!
— E nós? — gritei, finalmente incapaz de conter tudo o que sentia. — Vais esperar que eu também morra para perceberes que nos perdeste?
Ele ficou em silêncio durante tanto tempo que pensei que ia sair outra vez. Mas sentou-se ao meu lado e enterrou o rosto nas mãos.
— Eu não sei o que fazer… Sinto-me responsável por eles. O Luís era meu irmão…
— E tu és meu marido — respondi, mais calma mas ainda magoada. — És pai dos teus filhos. Não podes salvar toda a gente se perderes a tua própria família pelo caminho.
Nos dias seguintes tentei ser compreensiva. Falei com uma psicóloga na escola da Leonor; ela sugeriu terapia familiar. Propus isso ao António mas ele recusou: “Não tenho tempo para essas coisas”.
A situação piorou quando a Marta começou a ligar-lhe para tudo: uma lâmpada fundida, um problema com o carro, uma reunião na escola dos filhos dela. O António largava tudo para ir ajudá-la. Comecei a ouvir rumores na vila: “O António passa mais tempo em casa da cunhada do que na dele”, diziam as vizinhas à porta do café.
Uma tarde, fui buscar os meus filhos à escola e encontrei a Marta no portão com os dela. Ela sorriu-me mas vi cansaço nos olhos dela.
— Olá, Rita…
— Olá, Marta…
Houve um silêncio estranho entre nós.
— O António tem sido um anjo — disse ela de repente. — Não sei como teria aguentado sem ele…
Assenti mas não consegui sorrir.
— Às vezes sinto que já não o tenho cá em casa — confessei, surpreendendo-me com as minhas próprias palavras.
Ela baixou os olhos.
— Eu nunca quis isto… Só estou tão perdida…
Nesse momento percebi que ela também sofria — mas isso não tornava mais fácil ver o meu casamento desmoronar-se.
Nessa noite esperei pelo António acordada outra vez.
— António… precisamos mesmo de ajuda — disse-lhe assim que entrou.
Ele olhou-me nos olhos pela primeira vez em semanas.
— Achas que estou a perder-vos?
— Já nos perdeste um bocadinho… Mas ainda vais a tempo de voltar.
Ele chorou pela primeira vez desde o funeral do irmão.
Aceitou ir à terapia comigo e com as crianças. Foi difícil; houve gritos, acusações, silêncios dolorosos. Mas aos poucos começou a perceber que não podia carregar o mundo às costas sozinho.
Hoje ainda estamos a reconstruir-nos. O António continua presente na vida da Marta e dos sobrinhos — mas voltou para nós também. Ainda há dias em que sinto medo de o perder outra vez…
Às vezes pergunto-me: quantas famílias se desfazem porque ninguém sabe pedir ajuda? Será que é possível amar e cuidar dos outros sem nos esquecermos de quem está mesmo ao nosso lado?